Nabil Bonduki

Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, foi relator do Plano Diretor e Secretário de Cultura de São Paulo.

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Nabil Bonduki

Sem modernizar gestão, PL de Doria aniquila políticas públicas e prejudica a ciência

Extinção da CDHU é desserviço ao enfrentamento de um dos maiores problemas do país

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Sem argumentos sólidos para se contrapor à minha coluna “A boiada que Doria quer passar deixará Ricardo Salles e Bolsonaro com inveja” (17/8), o líder do governador na Assembleia Legislativa, deputado Carlos Pignatari, partiu para agressões pessoais e polarizações partidárias descabidas em seu artigo-resposta “A necessária modernização paulista” (20/8). Não me interessa debater nesse baixo nível.

Em nenhum momento, a coluna defendeu o “anacronismo e o corporativismo”, como afirma o deputado. Não refutei a necessidade de modernização da gestão estadual nem de equilibrar as contas públicas. Não defendi corporações nem a ineficiência do setor público. Minha opinião nada tem a ver com partidos mas com meu comprometimento com políticas públicas.

Textualmente, afirmei que “não se questiona a necessidade do estado equilibrar suas contas, mas a maneira como isso está sendo feito, em um período de isolamento, sem debate público, misturando temas e extinguindo instituições relevantes sem apresentar alternativas de gestão”. Em outro trecho, afirmo, “a proposta está longe de ser uma necessária reforma administrativa do estado”.

O governador Doria está tentando passar, através do PL 529, dez boiadas de temas diversos, cuja única conexão entre si é um suposto (e não garantido) enfrentamento do déficit do Estado e não sua modernização. Em vários aspectos, como na confisco dos recursos da Fapesp e das universidades, representa um retrocesso.

A proposta está pautada apenas por um viés financista, justificada por uma situação emergencial, sem nenhuma preocupação com as políticas públicas afetadas, como habitação popular, transporte coletivo metropolitano, gestão e pesquisa ambiental, fomento à inovação, ciência & tecnologia e questão agrária.

É preocupante que o governo e seu líder na Assembleia desconheçam o funcionamento orçamentário das universidades paulistas, que lideram o ranking de produtividade no país e da Fapesp, o mais importante órgão de fomento à pesquisa da América Latina.

O deputado afirma que “as três universidades (USP, Unicamp e Unesp) e a Fapesp tiveram uma sobra de R$ 1,5 bilhão em 2019”, “superávit” que o PL 259 determina que deva ser recolhido ao Tesouro do Estado.

É um erro técnico tratar o “superávit financeiro” do balanço anual da Fapesp (assim como das universidades) como sobra. São recursos necessários para fazer frente a compromissos já assumidos ao término de cada exercício, cujo desembolso ocorre no ano seguinte.

São projetos de pesquisa, bolsas de estudo, programas de inovações com empresas, centros de excelência e outros programas, que em 2019 somavam R$ 1,6 bilhão, “fruto da natureza plurianual dos projetos que a instituição apoia”, como afirma o Conselho Superior da Fapesp.

A Fapesp usa apenas 5% dos seus recursos para pagamento de pessoal e custeio, destinando 95% para apoiar projetos de pesquisa e bolsas para pesquisadores. Nos últimos cinco anos, recebeu R$ 5,7 bilhões do Tesouro do Estado (1% da receita tributária, como determina a Constituição Estadual) e despendeu um total de R$ 6,2 bilhões. As reservas passadas, chamadas de “sobras”, garantiram o pagamento da diferença.

O que tem de modernização mexer em uma instituição com eficiência comprovada no desenvolvimento cientifico do país? Se aprovada, a lei comprometerá obrigações já assumidas pela FAPESP e paralisará atividades de pesquisa, desenvolvimento e inovação, como entre outros, o apoio aos testes clínicos da nova vacina da Covid-19.

Em relação à extinção de empresas e fundações, o PL 259 não propõe reformar nem modernizar a gestão, o que seria necessário após três décadas de governo do PSDB que nada fez nesse sentido.

As empresas e institutos do Estado precisam ser reorganizados mas sua mera extinção, sem estabelecer como serão desenvolvidas seus serviços e atividades contribuirá para precarizar ainda mais a gestão pública.

É impossível tratar nesse espaço restrito, com a profundidade necessária, todas as dez instituições que Doria quer extinguir. Cada uma merece uma reflexão própria. Vou me restringir ao caso da CDHU (Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano), que tem a responsabilidade de implementar a política habitacional.

Além de ser um direito constitucional, a moradia está intimamente relacionada com a questão sanitária, emergencial nesse momento. Não por acaso, as áreas de moradia precária, como os cortiços nos bairros centrais e as favelas e loteamentos irregulares na periferia apresentam os mais altos índices de óbitos por Covid-19.

Nesse contexto, o estado deveria reformular sua política habitacional, aproveitando a experiência do quadro técnico da CDHU. Uma reestruturação institucional é necessária, frente aos novos desafios, estabelecendo competência claras para a administração direta, a Secretaria de Habitação, e a administração indireta, a CDHU.

A CDHU produziu, desde 1967, 541 mil unidades habitacionais, além de 100 mil outros tipos de atendimento, sendo que 90% ocorreu após 1990. A empresa atua ainda na urbanização de assentamento precários e regularização fundiária, além de prestar apoio aos pequenos municípios que não tem estrutura habitacional e urbana.

Tenho inúmeras críticas à atuação do CDHU, mas só quem não tem compromisso com a gestão pública e com o problema habitacional pode propor joga fora a experiência de um órgão que tem a maior produção habitacional do país.

Ao contrário de outras empresas públicas, a CDHU é superavitária. Em 2019, arrecadou cerca de R$ 800 milhões através de uma carteira de financiamento com 331 mil mutuários ativos, enquanto que os custos com pessoal e custeio foi de R$ 239 milhões. O orçamento do estado contribui com apenas 24% (R$ 371 milhões) de um orçamento total de R$ 1,5 bilhões, que inclui ainda R$ 330 milhões de outras fontes. Mesmo sem aporte do Tesouro do Estado, a empresa poderia contribuir significativamente.

Embora os últimos governos tenham investido em parcerias público-privadas, em um arranjo institucional que dispensaria a CDHU, o resultado tem sido decepcionante. A promessa de construir 14 mil unidades nas áreas centrais ficou no papel e apenas 1.230 foram efetivamente entregues.

Já o Casa Paulista contratou 100 mil unidades, mas apenas entregou até o momento 41 mil. A paralisia do Minha Casa Minha Vida – Faixa 1 dificulta a continuidade desse programa no que se refere a população de mais baixa renda. De qualquer forma, esses arranjos com o setor privado não contemplam programas específicos, como a urbanização de favelas, e a articulação entre política habitacional e política urbana.

A questão não é de números, mas da necessidade de formular uma nova política habitacional estadual, considerando a atual conjuntura. A experiência mostra que na implementação de programas habitacionais é indispensável a presença de um órgão da administração indireta. Nessa perspectiva, a extinção da CDHU é um desserviço ao enfrentamento de um dos maiores problemas sociais do país. Já sua reestruturação é indispensável.

Se o governador quer efetivamente promover uma reforma e modernização da gestão e, simultaneamente, equacionar o déficit do Estado, sem comprometer as políticas públicas, deveria propor a divisão do PL 259 em dez projetos específicos, cada um tratando de um tema, e promover um amplo debate que inclua os funcionários das instituições envolvidas, os beneficiários dos serviços por elas prestadas, especialistas e a sociedade em geral para formular uma proposta consistente tanto para enfrentar a crise emergencial que vivemos como para dar uma resposta estrutural para a gestão estadual.

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