Nabil Bonduki

Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, foi relator do Plano Diretor e Secretário de Cultura de São Paulo.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Nabil Bonduki

Pedale como Marina e, como ela, lute pelo direito à cidade

Assassinato deveria impulsionar o debate sobre o padrão cultural e modelo de mobilidade e segurança no trânsito que os governos defendem

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Há dois domingos, estava em campanha no Jardim Bandeirantes, na extrema periferia de Guaianazes, caracterizado por ruas estreitas e íngremes e calçadas de oitenta centímetros, quando um amigo me chamou no celular. “Você não viu as notícias? Precisa vir para o ato na avenida Paulista. A comoção é geral com o atropelamento da cicloativista, a Marina, que morreu na hora...”. Marina, que Marina? perguntei. “A Marina Harkot!...”

Fiquei mudo e com a vista turva, no meio daquela imagem de precariedade à minha volta. Era ela mesma, a Marina que tinha sido minha monitora na disciplina da planejamento e que fazia pós-graduação na FAU. Sua imagem firmou-se na minha imaginação. A Marina sorridente, de uma alegria contagiante.

Meu dia de campanha em Guaianazes acabou naquele momento. Peguei uma carona até a estação de trem, calculando se chegaria a tempo na avenida Paulista para uma despedida simbólica.

Entrei no trem pensando em como minha visão sobre a cidade, já tão consolidada, estava mudando desde que desisti de ter carro. A Marina teria gostado de saber, abriria aquele sorriso lindo, mas nem cheguei a contar isso para ela, pois não nos falamos nesse ano, afastados pela pandemia.

Marina Kohler Harkot, que viveu apenas 28 anos, mas fez tanta coisa pela mobilidade
Marina Kohler Harkot, que morreu após ser atropelada por veículo na zona oeste de SP - Arquivo pessoal

Em 2017, nos intervalos de atendimento aos alunos, ela me explicava várias coisas sobre gênero na mobilidade, tema de sua dissertação de mestrado. Discorria sobre as razões que prejudicavam o uso da bicicleta pelas mulheres nas grandes cidades e porque a escolha dos caminhos era tão diferente entre as mulheres e os homens, em função do risco de violência e assaltos.

Nos anos seguintes, cruzei com ela muitas vezes nas rampas da FAU e conversamos sobre os desafios de pedalar em São Paulo, sobre a necessidade da rua ser compartilhada e sobre os caminhos para mudar o modelo de mobilidade de São Paulo.

Pesquisadora vibrante, Marina conseguia intercalar sua atividade acadêmica e profissional com o ativismo político. Enquanto estudava gênero na mobilidade ativa, atuava em coletivos de cicloativismo, lutando por políticas públicas que alterasse a lógica e a cultura de mobilidade que privilegia o automóvel que, simbolicamente, se tornou seu algoz.

Em seu doutorado, mais voltado para a interseccionalidade, pesquisava como gênero, raça e sexualidade se relacionam com a segregação socioterritorial. Para ela, o medo, que afeta diferentes segmentos sociais, como mulheres, negros e os LGBTQIA+, retira a liberdade de usufruir as múltiplas oportunidades oferecidas pela grande cidade. Esse medo afeta o direito a mobilidade das mulheres, que evitar, por exemplo, a circulação noturna e em determinados lugares. Mas não limitava Marina.

Atropelada na avenida Sumaré, à meia noite de um sábado, aos 28 anos, Marina teve sua brilhante carreira interrompida por um modelo da cidade e por uma cultura machista e carrocêntrica que ela pesquisava, denunciava e lutava para mudar.

Quando essas tragédias acontecem com pessoas que admiramos elas deixam de ser estatísticas e ganham concretude. De acordo com a Associação Brasileira de Medicina de Tráfego (Abramet), 13.718 ciclistas morreram no trânsito nessa década no Brasil.

A grande maioria morreu anonimamente. Quem foram os outros 23 ciclistas que já morreram nesse ano e os 36 que faleceram em 2019 em São Paulo (dados do Infosiga)? São invisíveis, mas eles também tem um rosto e uma história que precisa ser contada.

Marina foi atropelada pelo microempresário José Maria da Costa Júnior, 34, que fugiu sem prestar atendimento. Segundo as investigações da Polícia Civil, José Maria havia ingerido bebidas alcóolicas e o Fantástico mostrou seu carro circulando a 90 km/h em uma avenida próxima ao local onde cometeu o crime.

Quando perguntado por que não socorreu a vítima, o homem declarou ao programa da Globo que “não tinha noção do que tinha acontecido, de que alguém pudesse estar machucado, se era um roubo, se era alguma coisa... Como tinha mais gente lá, que tivesse até mais condições de socorrer, eu entreguei que as pessoas pudessem socorrer essa pessoa”. Ele foi filmado no elevador de seu edifício, alguns minutos após o crime, dando risadas.

A postura arrogante e prepotente de José Maria, que foi indiciado por homicídio culposo (quando não há intenção de matar), revela uma cultura urbana consolidada que precisa ser revertida para evitar novas tragédias.

Não se trata apenas de punir exemplarmente o homicida, superando a tradicional impunidade dos crimes de trânsito, mas de promover programas de reeducação para uma nova cidadania. José Maria é apenas um triste exemplo de um comportamento amplamente difundido entre os motoristas. A maioria ainda não aceita que, de acordo como o Código Nacional de Trânsito, “o maior deve sempre cuidar do menor, ou seja, o carro motorizado deve ter o cuidado maior com o ciclista”.

A visibilidade do assassinato de Marina deveria impulsionar o debate sobre o padrão cultural e modelo de mobilidade e segurança no trânsito que os governos defendem. Em São Paulo, o lema Acelera SP e o aumento das velocidades das marginais, adotados pela prefeitura em 2017, deram uma sinalização negativa para a sociedade.

A repercussão do caso deve servir para que os candidatos a prefeito de São Paulo e das outras 51 grandes cidades onde ocorrerá o segundo turno da eleições respondam cinco perguntas básicas:

  1. O que farão para alterar o modelo de mobilidade da cidade, revertendo a histórica prioridade dada ao automóvel?
  2. O que farão para restringir o espaço viário que o carro ocupa em benefício do transporte coletivo, dos pedestres e das bicicletas?
  3. O que farão para reduzir a velocidade dos automóveis e das motos nas cidades, considerando que uma redução de 5% na média de velocidade pode diminuir o número de mortes em 30%, segundo a OMS?
  4. O que farão para ampliar a segurança dos pedestres e dos ciclistas e o direito à mobilidade para mulheres, negros e LGBTQIA+?
  5. O que farão para mudar a cultura urbana dos motoristas, introduzindo uma nova postura baseada na civilidade e no compartilhamento do viário?

São perguntas que, tenho certeza, Marina gostaria de ver respondidas.

LINK PRESENTE: Gostou desta coluna? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.