Nabil Bonduki

Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, foi relator do Plano Diretor e Secretário de Cultura de São Paulo.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Nabil Bonduki

O desmonte do patrimônio cultural une Bolsonaro, Doria e Covas

Em se tratando de proteção ao patrimônio cultural e ambiental, o descaso praticado pelos três níveis de governo é o mesmo

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

O governador João Doria pode querer rivalizar com Jair Bolsonaro de olho na disputa pela Presidência. O prefeito Bruno Covas pode querer, como manifestou após sua reeleição, seguir os passos de um PSDB mais progressista, se inspirando no seu avô, o ex-prefeito Mário Covas.

Mas em se tratando de proteção ao patrimônio cultural e ambiental, preservação de acervos e independência técnica dos órgãos de preservação, o descaso praticado pelos três níveis de governo é exatamente o mesmo. Eles estão unidos pelo desmonte da nossa memória e pela entrega dos bens públicos.

Nessa semana, ganhou destaque e indignação a não abertura do processo de tombamento do Complexo Desportivo Constâncio Vaz Guimarães, que inclui o Ginásio do Ibirapuera, assunto que tratei em artigo da Folha. O ginásio foi palco de um abraço neste domingo (6) por centenas de atletas e cidadãos, que defendem a preservação do espaço.

Apesar desse clamor popular, o Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico e Turístico do Estado (Condephat) rejeitou a abertura de um processo de tombamento, ou seja, se recusou até mesmo a estudar a pertinência da proteção de um lugar que, além do valor arquitetônico, tem forte apelo simbólico entre esportistas e usuários.

A decisão, relacionada a concessão da área ao setor privado, é resultado da alteração da composição do Condephat promovida por Doria, que retirou representantes das universidades para ter maioria e garantir a aprovação dos projetos do governo.

Não é prática isolada. Os três níveis de governo estão empenhados em desestruturar os órgãos técnicos de proteção cultural e ambiental, para ficarem livres para atender interesses econômicos e entregar lugares significativos e simbólicos da memória do Brasil para a exploração privada.

Como Doria, o ministro Ricardo Salles alterou a composição do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) para ter maioria. Com isso, liberou mangues e restingas à exploração econômica, medida sustada pelo Judiciário.

No Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), o mais antigo órgão do governo federal (1937), o presidente vem promovendo sucessivas trocas de chefias para atender a interesse políticos e de apoiadores.

Mais autêntico do que o governador, Bolsonaro não tem vergonha de ser explícito: “O Iphan ... encontra lá um cocô petrificado de índio e para a obra, pô!”, declarou na mesma reunião ministerial de abril, em que Ricardo Salles afirmou que iria aproveitar a pandemia para “passar a boiada”.

Em seguida, Kátia Bogéa, técnica de carreira, foi exonerada da presidência após pressões de Luciano Hang, dono da Havan, e do senador Flávio Bolsonaro. Hang reclamou da paralisação da obra de uma loja pelo Iphan, por ter encontrado cerâmicas, vestígios arqueológicos de civilizações passadas.

Já o senador Flávio vocalizou representantes do setor imobiliário da Bahia, insatisfeitos com uma portaria que estabelecia diretrizes para o entorno dos bens tombados na região da Barra, em Salvador, um local que ficou famoso pela da aprovação do Edifício La Vue, que envolveu o ex-ministro Geddel Vieira Lima, o mesmo das malas de R$ 60 milhões.

Diretores e superintendentes regionais do Iphan, cargos tradicionalmente ocupados por qualificados técnicos de carreira, passaram a ser indicados por apoiadores do presidente, em geral, pessoas sem qualificação, sujeitas a pressões políticas e econômicas.

Bogéa foi substituída por Larissa Dutra, cuja nomeação foi suspensa pela juiz Adriano de França, da 28ª Vara Federal por não tem experiência ou formação profissional compatível com o cargo.

O superintendente do Iphan no Paraná, Leopoldo de Castro Campos, um engenheiro sem qualquer experiência em patrimônio histórico, atuou para autorizar uma obra questionada pelo próprio órgão e, com isso, favorecer o filho e o deputado federal Nelsi Coguetto Maria (PSD), que o indicou ao posto.

Em Goiás, o Ministério Público recomendou ao ministro da Cidadania que tornasse sem efeito a nomeação de Allysson Cabral, indicado para a superintendência regional por um deputado, alegando que o indicado não “possui perfil e formação adequados para o cargo e que a nomeação não atende ao interesse público e à legislação”.

Na semana passada, o Iphan anunciou que vai trocar o diretor do Departamento de Patrimônio Imaterial, nomeando um pastor evangélico. A troca gerou forte reação de 15 entidades técnicas e acadêmicas, que emitiram um nota de repúdio apontando "escolhas arbitrárias e desmontes nas instituições culturais e no Iphan".

O prefeito de São Paulo não fica fora dessa lógica de intervenção nos órgãos de patrimônio para torná-los submissos às decisões da gestão.

Insatisfeita com a eleição, pelos membros do Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo (Conpresp), de uma qualificada técnica de carreira para a presidência do órgão, a gestão Bruno Covas se mobilizou para anular a eleição, remover a profissional e indicar um ex-secretário municipal. Provavelmente, o tombamento do complexo desportivo do Ibirapuera, em âmbito municipal, passará pelo órgão.

A redução da tradicional e indispensável autonomia dos órgãos de preservação busca, entre outros objetivos, facilitar o processo de concessões de bens púbicos ao setor privado e se combina com o descaso dos governantes com o patrimônio e os acervos públicos. São inúmeros os casos em que os acervos públicos estão ameaçados.

A Cinemateca, que reúne o maior acervo audiovisual da América Latina, com mais de 250 mil rolos de filmes, que está em risco. O edifício do Museu do Meio Ambiente, que se localiza no histórico Jardim Botânico (Rio de Janeiro), está sendo oferecido à iniciativa privada para ser transformado em hotel boutique.

Com a concessão do Parque do Ibirapuera, a Escola Municipal de Astronomia, instituição criada em 1961 junto ao planetário, foi desalojada, e seu acervo, que inclui meteoritos, telescópios antigos, entre outros objetos, foi removido para um depósito da prefeitura, onde pode sofrer danos.

O que será do precioso acervo do Museu Florestal Octávio Vecchi, localizado no Parque Estadual Alberto Löfgren, conhecido popularmente como Horto Florestal, se ele for concedido, como é o projeto do governador?

O museu, inaugurado em 1931, guarda um acervo precioso, com a história da preservação ambiental no Estado. O edifício, construído para ser museu, tem cada um de seus espaços pensados com uma finalidade específica, com a contribuição de artistas, artesãos, e cientistas especializados na flora nativa da região. Está em curso uma campanha para tombá-lo, mas com o atual furor de concessões e as composições viciadas do Condephat e Conpresp não se sabe o resultado.

Como se vê, o caso do Ginásio do Ibirapuera é apenas a ponta de um iceberg. Se a sociedade não acordar para o processo de desmonte do nosso patrimônio cultural, iremos perder instituições, acervos, edifícios e muito mais, criados com muita dificuldade e que fazem parte da nossa identidade. E sem memória nossas chances de futuro, já tão escassas, ficarão ainda menores.

LINK PRESENTE: Gostou desta coluna? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.