Nabil Bonduki

Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, foi relator do Plano Diretor e Secretário de Cultura de São Paulo.

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Nabil Bonduki
Descrição de chapéu trânsito

Precisamos de muitos Padres Júlios para combater a arquitetura hostil

Quem defende uma cidade para todos não pode naturalizar essa arquitetura

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Espetos e pinos metálicos pontudos; pavimentações irregulares; plataformas inclinadas; pedras ásperas e pontiagudas; bancos sem encosto, ondulados ou com divisórias; regadores, chuveiros e jatos d’agua; cercas eletrificadas ou de arame farpado; muros altos com cacos de vidro; plataformas móveis inclinadas; blocos ou cilindros de concreto nas calçadas; dispositivos “anti-skate”. A lista é longa e está incompleta.

A “arquitetura hostil” (também chamada de “defensiva”, “antimendigo”, “da exclusão” ou “design desagradável”) está cada vez mais presente na cidade contemporânea neoliberal, tanto nos países ricos, como nos de renda intermediária, onde a desigualdade e pobreza crescem em ritmo acelerado, ao lado da discriminação e da concessão do espaço público ao setor privado.

A arquitetura hostil é uma forma de afastar os seres humanos indesejáveis na atual ordem urbana, baseada no consumo, na segregação e na intimação. Maneira fácil, econômica, cruel e silenciosa de manter os que não são bem vindos fora do alcance da vista.

Quem defende uma cidade para todos, solidária, de convivência e de encontros sociais não pode naturalizar a “arquitetura hostil”, como se ela fosse normal. Indignar-se é essencial, como fez o Padre Júlio Lancellotti.

Padre Julio Lancellotti em frente a pedras instaladas sob viadutos para impedir que moradores de rua se instalem no local
Padre Julio Lancellotti esteve sob viaduto - Henrique de Campos

Ele foi pessoalmente ao Viaduto Dom Luciano de Almeida (Zona Leste de São Paulo) retirar as pedras pontiagudas que a prefeitura instalou para impedir a permanência da população em situação de rua no local. Foi um ato simbólico, de resistência à arquitetura hostil, que precisa gerar mais do que manifestações de apoio nas redes sociais.

Embora a prefeitura alegue que a decisão de instalar as pedras foi tomada de forma isolada por um funcionário e que mandou retirá-las do local, o fato é que a arquitetura hostil é estimulada ou tolerada em São Paulo e na maioria das cidades brasileiras.

Embora afastar a população em situação de rua seja o principal objetivo da arquitetura hostil, ela vai muito além disso. Insere-se em uma lógica de mercantilização do espaço público.

Valorizado, a partir de concepções como a do arquiteto dinamarquês Jan Gehl (“A cidade para as pessoas”) e de intervenções urbanas de reabilitação, o espaço público e seu mobiliário passou a ser mercantilizado, requerendo, para gerar as receitas esperadas, excluir ou dificultar a presença, nos locais de livre acesso, dos que não são consumidores. Espaços públicos reabilitados, como o Anhangabaú, têm sido concedidos para o setor privado.

Para o historiador inglês Iain Borden, a arquitetura hostil ganha expressão em Londres a partir de 1990, a partir de uma visão de que “só somos cidadãos se estamos trabalhando ou consumindo. Por isso, é aceitável, por exemplo, ficar sentado no espaço público, desde que você esteja num café ou num lugar previamente determinado”.

Na China, já tiveram a ideia de mercantilizar os bancos em espaços públicos. No assento são instalados pinos que se abaixam quando se insere uma moeda, que dá direito a um período de tempo predeterminado, ao final do qual os pinos se elevam novamente.

Ao dificultar a permanência de pessoas no espaço público, a arquitetura hostil acaba atingindo os jovens, sobretudo os de baixa e média renda, que utilizam esses locais para encontros, sociabilidade e namoro. Uma estratégia para excluir jovens de alguns lugares é instalar aparelhos que emitem sons agudos, sensíveis aos adolescentes, mas imperceptíveis aos adultos.

A arquitetura hostil torna desagradáveis e inadequados os espaços públicos de acesso livre e gratuito. Bancos sem encosto ou separados por tubos de ferro, além de impedir que a população em situação de rua possa usá-los para dormir, dificulta o namoro ou outras atividades mais prolongadas.

A arquiteta servia radicada na Suíça, Selena Savic, coautora do livro "Unpleasant Design", define “design desagradável” como uma forma de impedir determinados comportamentos e usos em espaços públicos, utilizada contra parcelas marginalizadas, como moradores em situação de rua e grupos que não são bem-vindos em todos os lugares, como skatistas. Para ela, “esse tipo de design é como um agente silencioso, não aparente para as pessoas que não são seu alvo”.

No Brasil, há um longo histórico de iniciativas deste tipo. Uma reportagem da Folha, “Cidade cria arquitetura antimendigo” (4/9/1994), mostrou que para afastar os moradores em situação de rua os condomínios estavam gradeando as áreas cobertas na frente dos prédios e instalando chuveiros sobre as calçadas. A prefeitura, por sua vez, estava gradeando os baixios dos viadutos e, posteriormente, surgiram as “rampas anti-mendigo” e os “bancos anti-mendigo”.

Em várias cidades brasileiras dispositivos da arquitetura hostil têm sido implantados sem sofrer grande resistência. Em minucioso levantamento realizado para sua dissertação de mestrado ("Sem descanso: Arquitetura hostil e controle do espaço público no centro de Curitiba"), Debora Raquel Faria identificou 448 pontos de arquitetura hostil na área central de Curitiba, entre os quais, 123 pinos pontiagudos, 16 espetos, 128 grades e 103 arranjos vegetais.

É óbvio que não se eliminará a população em situação de rua com esses dispositivos de design agressivo. Eles apenas criam ainda mais revolta e sofrimento, deslocando o problema de uma área para outra.

A população em situação de rua, que cresceu 11,5% ao ano, entre 2015 e 2019 ("São Paulo a cidade em que a população de rua mais cresce no mundo", Folha 3/2/2020), tomou dimensões inusitadas durante a pandemia, com os despejos que não foram evitados. O problema é de difícil solução, mas existem formas de enfrentá-lo pela raiz, como uma prioridade emergencial.

Precisamos de muitos Padres Júlios para dar visibilidade e combater a arquitetura hostil. Ela é um elemento nefasto que empobrece as cidades no que elas têm de mais positivo. Desalenta a convivência humana, desestimula a diversidade no espaço público e aprofunda ainda mais a desigualdade urbana.

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