Nabil Bonduki

Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, foi relator do Plano Diretor e Secretário de Cultura de São Paulo.

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Ao zerar o orçamento da habitação, Bolsonaro deixará um legado de obras em ruínas

Ao sancionar o orçamento da União, presidente vetou 73% dos recursos destinados à habitação

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O desmonte das políticas públicas no país pode ser representado por uma espécie de polvo com duas cabeças e inúmeros tentáculos. As cabeças são as duas forças políticas que se aliaram para eleger e sustentar Bolsonaro: a extrema-direita, conservadora, negacionista e miliciana, agora unida ao velho centrão, e o neoliberalismo radical, cuja única preocupação é o equilíbrio fiscal.

Os tentáculos desse polvo são as várias formas que essas cabeças usam para destruir as políticas públicas, criando um cenário de barbárie e devastação. Pelo impacto na vida dos brasileiros e repercussão internacional, são muito visíveis os tentáculos relacionados com o desastre sanitário, que contribuiu para as quase 400 mil mortes por Covid 19, e com as queimadas e desmatamentos recordes na Amazônia e no Pantanal.

Mas para onde se olha, veem-se outros tentáculos atuando para gerar esse irresponsável desmonte das políticas públicas, que aos poucos vai transformando o país em terra devastada. A mais recente vítima, que já balança desde o governo Temer, é o programa habitacional destinado à população de baixa renda, a que mais sofre com a pandemia.

Ao sancionar o orçamento da União, negociado com o Congresso com polpudas emendas parlamentares para evitar seu impeachment e com a equipe econômica para tentar cumprir a regra fiscal, Bolsonaro vetou 73% dos recursos destinados à habitação. De um total de R$ 3,25 bilhões, sobraram R$ 870 milhões, parte dos quais comprometidos com emendas.

Se mantido, o corte acrescentará à extensa lista de devastações grande quantidade de obras habitacionais inacabadas, que logo poderão se transformar em ruinas ou mesmo em favelas, se forem ocupados por uma legião cada vez maior de sem teto, que busca um lugar para se alojar nas cidades.

Os cortes atingiram os recursos não onerosos (subsidiados) destinados à produção de moradias para a Faixa 1 do Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV), atual Casa Verde Amarela, cujos beneficiários são as famílias com renda mensal inferior a R$ 2.000.

O mais atingido foi Fundo de Arrendamento Residencial (FAR), que financia a produção habitacional promovida pelo setor privado, onde o corte foi de 98%. Do R$ 1,54 bilhão a ele destinados, sobraram 27 milhões! Já no Fundo de Desenvolvimento Social (FDS), que apoia a produção de moradia promovida por entidades, o corte foi de 51%. Dos R$ 720 milhões sobraram R$ 350 milhões.

Esses recursos não eram destinados a empreendimentos novos, mas para dar continuidade às obras em andamento. Mantido o orçamento sancionado por Bolsonaro, elas serão paralisadas já em maio, pois os recursos disponíveis à Faixa 1 já foram executados nos quatro primeiros meses de 2021.

De acordo com a Câmara Brasileira da Indústria da Construção (CBIC), centenas de canteiros em todo o país serão paralisados, interrompendo a construção de 250 mil casas. Em consequência, estima-se que 750 mil trabalhadores diretos e indiretos perderão o emprego.

Obras paradas representam um enorme custo social e econômico: além do desemprego, os custos indiretos de um canteiro imobilizado são imensos, com risco de deterioração e de perda de materiais.

Ao exceder o cronograma previsto, a obra fica mais cara, gerando desequilíbrio econômico-financeiro em contratos que não são reajustado pela inflação. Cenário que dificulta a retomada das obras. O que seria um conjunto habitacional corre o risco de virar uma ruina ou uma ocupação.

Para a cabeça bolsonarista do polvo, tudo bem. Eles gostam mesmo de cenários de guerra, de terras devastadas. O próprio presidente já afirmou que seu programa é, primeiramente, destruir.

Já para a cabeça neoliberal, a ortodoxia parece ser tal que, se o preço a pagar para cumprir uma irreal meta fiscal for levar à falência setores econômicos estratégicos e gerar mais desemprego, crise social e desigualdade, paciência.

A perspectiva de paralisação das poucas obras habitacionais que restaram do PMCMV (em 2014, o orçamento do FAR foi de R$ 14,5 bilhões, dez vezes maior do que o que foi cortado esse ano) ocorre em um momento em que, ao contrário, o país deveria estar debatendo e buscando viabilizar um plano habitacional de grande escala, tanto para garantir um direito fundamental como para impulsionar uma retomada da economia.

A pandemia escancarou a necessidade da habitação, que além de moradia, passou a ser, para muitos, lugar do trabalho, do estudo e do lazer, como mostrei em artigo publicado ontem na Ilustríssima. “Fique em casa” passou a ser uma regra sanitária, mas para a população de baixa renda, o acesso a uma moradia digna depende de programas públicos, com subsídio. Sem isso, a única alternativa são as ocupações.

Como mostrou a Folha, a miséria e o empobrecimento se ampliaram no país e uma das manifestações é a crise de moradia. Segundo Valdirene Ferreira, uma das organizadoras da ocupação do Jardim Julieta, iniciada pelo MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto), em 2020, a demanda foi tanta que “o espaço destinado a cada família foi reduzido à metade, para 4,5 metros por 4,5 metros, para acomodar mais gente”. Segundo ela, “as pessoas não param de chegar e há filas para tentar acomodá-las”.

Nesse contexto, a produção habitacional pode ser uma das estratégias da retomada do crescimento econômico e do emprego, como propõe o Plano Biden. Independentemente de uma avaliação mais ampla do PMCMV, assunto para outra coluna, ele contribuiu para impulsionar a economia na crise de 2008/9, garantindo o crescimento do PIB e um quase pleno emprego, que vigorou até 2015.

Segundo a economista Ana Maria Castelo, coordenadora de Estudos da Construção Civil do Ibre/FGV, em nove anos, o PMCMV gerou 3,5 milhões de empregos e R$ 163,4 bilhões em tributos diretos e indiretos. Esse valor foi superior aos subsídios aportados pelo Tesouro para atender a baixa renda (Faixa 1), que atingiram cerca de R$ 110 bilhões.

​O equilíbrio fiscal não pode ser negligenciado, mas também não pode ser uma camisa de força. Na atual conjuntura, ao invés de cortar um programa social, o governo deveria ampliá-lo, impulsionando a economia para gerar mais emprego, renda e tributos para tirar o país da crise e da recessão, única forma de combater a miséria e o empobrecimento.

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