Nabil Bonduki

Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, foi relator do Plano Diretor e Secretário de Cultura de São Paulo.

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Nabil Bonduki

Para Paulo Mendes da Rocha, a cidade é uma questão eminentemente política

Arquiteto e urbanista morreu neste domingo (23) aos 92 anos

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A obra e o pensamento do arquiteto e urbanista Paulo Mendes da Rocha, que nos deixou órfãos nesse domingo, pode ser analisada por múltiplos ângulos.

Sua obra arquitetônica lhe rendeu inúmeros prêmios, como o Leão de Ouro de Veneza, a Medalha de Ouro do Real Instituto de Arquitetos Britânicos (Riba) e o Prêmio Imperial do Japão. Foi o único brasileiro, além de Oscar Niemeyer, a recebeu o Pritzker, em 2006, uma espécie de Nobel da Arquitetura.

Um dos dois principais integrantes da Escola Paulista, ao lado de Villanova Artigas, foi um mestre que formou várias gerações de arquitetos, muitos do quais continuaram a trabalhar em parceria com ele.

Dentre as múltiplas abordagens que sua obra magistral suscita, vou enfatizar nessa coluna seu pensamento sobre a cidade, que ficará como um legado e um farol para iluminar os debates sobre o futuro do urbanismo no Brasil.

Afinal, como ele afirmou em entrevista ao jornalista Jotabê Medeiros, seu olhar voltou-se, nos últimos anos, para a cidade. “A arquitetura mudou, na minha opinião. Basicamente, saiu do interesse do edifício como um fato isolado para a questão da cidade. O objeto da arquitetura hoje é a cidade, a realização da cidade.”

Paulo defendia a cidade como o lugar do ser humano, lugar do encontro por excelência. Para ele, em um dos diálogo que travamos ao longo dos últimos anos, “a cidade pode ser vista como uma nova natureza, que vamos ocupar de um outro modo”.

Ele via a cidade em incessante processo de transformação. “A cidade é um acontecimento extraordinariamente rico sobre todos os aspectos que você queira imaginar: distribuição de cultura de um modo geral, bares, restaurantes, museus, sistema de transporte público, etc.”, afirmou em entrevista ao Itaú Cultural.

O modelo de cidade que estava na sua cabeça se relacionava com a concepção do urbanismo moderno: verticalização, valorização do espaço público, eliminação de qualquer separação entre o público e o privado, mistura de usos, adensamento e desprezo pela vegetação fragmentada.

Quantas vezes não o ouvi exaltar a superioridade do Conjunto Nacional e do Edifício Copan, como exemplos a serem seguidos? Edifícios altos, ocupação integral do lote, uso misto, galerias nos térreos, dando continuidade ao espaço público. Espaço edificado e urbano, ao mesmo tempo, onde a habitação, o trabalho e o lazer na mesma construção.

No entanto, em sua trajetória profissional, ele não pode projetar esse tipo de edifício, provavelmente por falta de oportunidades em um mercado imobiliário que se tornou, a partir dos anos 1960, refratário a essas ideias.

Nas primeiras décadas de sua carreira, projetou muitas casas individuais e alguns edifícios verticais, mas nenhum com a concepção que mais defendia. Talvez por ser um ácido crítico dos condomínios fechados: “O palácio e a corte sempre eram um condomínio fechado. O mercado explora isso de uma forma que só pode dar um desastre.”

Ele também não pode exercitar sua concepção quando projetou, em parceria com os arquitetos Villanova Artigas e Fábio Penteado, o imenso Conjunto Habitacional Zézinho Magalhães (1967), localizado no subúrbio de Cumbica, longe da urbanidade que o arquiteto defendia.

Promovido pela Cecap, órgão estadual de habitação, e financiado pelo BNH, em plena ditadura militar (que o aposentou compulsoriamente da FAU-USP, em 1969), o conjunto, com 10,5 mil unidades habitacionais, é formado por centenas de bloquinhos de quatro pavimentos, unifuncionais. O metrô chegou lá somente 50 anos após sua concepção, período em que o térreo livre, destinado ao uso comum, foi transformado pelos moradores em estacionamento.

Essa inserção urbana se chocava com seus argumentos sobre o valor da localização. “O que mais vale em uma casa hoje é seu endereço. É onde ela está. E a melhor maneira de se colocar essa casa em um lugar desejável é um prédio vertical porque é ali que todos querem estar. A única maneira de muitos estarem na melhor localização, com metrô, transporte público da porta, etc. é a concentração que a construção vertical passou a permitir. Isso é a cidade.”

Embora não concretizada em seus projetos residenciais, a ideia está consagrada no Plano Diretor de São Paulo, cidade onde está a maioria de seus projetos. Ele era otimista, mas não minimizava os obstáculos. “E aí entram conflitos incríveis, entre razões de caráter utópico, do que seja a cidade, e as razões do mercado, que destroem tudo, passam por cima de tudo, necessidades e desejos”.

Ele exemplificava esses conflitos na questão da mobilidade. “É fácil concluir que é uma estupidez você comprar querosene para transportar 700 kg de lata daqui para lá para que um cretino, de 70 kg, fique lá dentro sem conseguir andar porque o trânsito está entupido. Mas vai dizer para a indústria automobilística que não se deve mais comprar carro! Você pode ser morto na rua.”

Consciente dessas dificuldades, Paulo nunca abandonou a militância, ao seu modo, e tinha claro a relação entre a cidade e a política: “a cidade será o que nós queremos que ela seja. Ela é uma questão eminentemente política”.

Após a redemocratização, o arquiteto teve a oportunidade de trabalhar em inúmeros projetos de equipamentos culturais públicos, onde sua visão de cidade esteve presente e onde ele colheu grande projeção internacional. Projetos de edifícios novos, como o Museu da Escultura e Ecologia, e vários projetos de reciclagem, como a Pinacoteca do Estado, o Museu da Língua Portuguesa e o Sesc 24 de Maio, obras que se tornaram referências urbanas de São Paulo. Cada um deles valeria um artigo...

Mas dos muitos dos seus projetos que não saíram do papel, um é especialmente importante para mim. Em 2015, como Secretário Municipal de Cultura, tive a oportunidade de lhe solicitar um projeto para reconfigurar o principal acesso do parque Ibirapuera, com a implantação de uma praça para articular seus equipamentos culturais, como o Auditório, a Oca e a entrada da marquise. Ele era o arquiteto designado por Oscar Niemeyer para fazer eventuais alterações no projeto do parque.

A ideia era reorganizar os espaços públicos abertos naquele trecho, retirando vagas e a circulação de automóveis, facilitando o acesso por transporte público e para os pedestres, aumentando as superfícies permeáveis e criando uma espaço de convivência condizente com a importância do lugar.

O projeto, que expressava a visão do arquiteto sobre a cidade, foi engavetado pela prefeitura, na gestão João Doria, por um injustificável desinteresse, visto que o custo era pouco expressivo para o orçamento municipal.

Quem sabe, agora, como uma homenagem póstuma, a praça de entrada do Ibirapuera possa ser implantada, dando-lhe o nome do arquiteto que a projetou. Seria um feliz encontro entre os dois maiores arquitetos brasileiros: um parque projetado por Oscar Niemeyer e uma praça idealizada por Paulo Mendes da Rocha.

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