Nabil Bonduki

Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, foi relator do Plano Diretor e Secretário de Cultura de São Paulo.

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Nabil Bonduki
Descrição de chapéu Coronavírus

SP alcança 100 mil óbitos por Covid 19 sem ter aprendido a enfrentar o vírus

Se o Brasil é um desastre, São Paulo não fica muito atrás

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Quem conhece as disparidades regionais do país e acompanha a pandemia pelos noticiários, sem observar os dados com cuidado, deve acreditar, ilusoriamente, que São Paulo se destaca positivamente em relação ao país e aos demais estados no combate ao coronavírus.

Afinal, São Paulo tem a maior arrecadação, renda per capita e PIB do país, a melhor rede hospitalar, de saneamento e malha rodoviária, os mais avançados institutos de pesquisas e conta com os municípios mais bem avaliadas em inúmeros rankings de qualidade de vida, com Índice de Desenvolvimento Humano e Índice de Desenvolvimento Social. Todos esses indicadores são importantes para atenuar o impacto da pandemia e deveriam propiciar os melhores resultados, comparativamente.

Em termos de gestão da crise sanitária, ao contrário da administração federal, o governo paulista seguiu as recomendações científicas básicas. Anunciou com bastante rapidez medidas de isolamento social, restrições ao comercio e à circulação de pessoas.

Semanalmente, o governador Doria promove eventos midiáticos para tratar da pandemia. Acompanhado de secretários, do presidente do Instituto Butantan e de membros do Centro de Contingência do Estado, passou a impressão de seriedade e eficiência. Todos de pé, enfileirados com ar solene e usando máscaras, em evidente contraste com o comportamento escrachado e irresponsável do presidente Bolsonaro.

Nessas sessões televisionadas, apresentou o Plano São Paulo, com métricas para regular a flexibilização do isolamento, anunciou iniciativas e comemorou resultados, sempre recomendando evitar aglomerações, usar máscaras e álcool-gel. Por algum tempo, passou confiança aos paulistas que compreendiam a gravidade da pandemia.

Enquanto o presidente desprezava a ciência e a necessidade de vacinas, o govenador aparecia empenhado em obtê-las, apesar da Fiocruz, fundação do governo federal, ter feito exatamente o mesmo que o Instituto Butantan: um acordo de cooperação com laboratórios estrangeiros para importar imunizantes e produzir as vacinas no país.

Doria surfou na onda do Butantan, ao anunciar em dezembro um calendário (irreal) de vacinação e promover a aplicação da primeira vacina no país, o que contribuiu para um relaxamento das medidas de prevenção, o que veio a agravar a segunda onda.

O esforço de comunicação do governador deu resultado, passando a sensação de que São Paulo estava indo bem no combate a Covid 19. Mas a análise dos dados e a avaliação das ações do governo mostram que não foi bem assim. Frente ao seu potencial econômico e científico, os resultados são decepcionantes.

Ao alcançar a simbólica marca de 100 mil óbitos, o estado de São Paulo apresenta também péssimos resultados relativos, mesmo considerando que a população idosa em SP (15,7% do total) está um pouco acima da média nacional (14,1%).

Com 2.190 óbitos por milhão de habitantes, São Paulo supera, em termos relativos, o Brasil como um todo, que tem 2.006 óbitos por milhão, e dezessete estados. Nove estados tem índices piores que os paulistas, liderados pelo Amazonas, com 3.014 óbitos por milhão.

Se fosse um país, o estado de São Paulo estaria em nono lugar no mundo em números absolutos de óbitos e em oitavo em números relativos, superado apenas por pequenos países do leste europeu. Nas Américas seria o líder superando EUA, Peru, México e todos os demais, em termos relativos.

Se o Brasil é um desastre, São Paulo não fica muito atrás. Claro que Bolsonaro também é responsável pelo que ocorre no estado, onde tem muitos adeptos. Ao minimizar a pandemia, estimular aglomerações e menosprezar o isolamento, o presidente contribuiu para esse resultado.

Isso, porém, não isenta o governo do estado da responsabilidade por estar conduzindo o enfrentamento da pandemia de forma insuficiente e muitas vezes equivocada. Sobretudo, a ausência de múltiplas iniciativas de prevenção foi um fator determinante para o elevado número de mortes no território paulista.

Não se promoveu uma testagem em massa da população, objetivando identificar e isolar os contaminados, reduzindo a circulação do vírus. Nada foi feito para impedir que o vírus viajasse entre as várias regiões do estado, o que levou a um migração da pandemia das áreas mais afetadas para as demais.

O Plano São Paulo, uma boa ideia que não foi aperfeiçoada, ficou limitado a um abre e feche das atividades econômicas formais, alterando-se inúmeras vezes os horários de funcionamento do comercio. Parece que o governo ignora a maneira como a cidade funciona. Nas regiões mais periféricas, as regras estabelecidas não foram cumpridas, e a fiscalização foi quase inexistente.

Ao reduzir o horário de funcionamento do comercio formal, além de prejudicar o faturamento das empresas, aumenta-se a densidade de pessoas circulando e frequentando os estabelecimentos ao mesmo tempo, gerando um efeito contrário do que se pretende.

Embora saiba-se que o vírus tem maior poder de contaminação em ambientes fechados e sem ventilação, nada foi feito para fiscalizar os estabelecimentos, especialmente os bares e restaurantes, incluindo esse aspecto nas regras de funcionamento. Proibiu-se mesas nas calçadas ao ar livre, que são mais seguras que em espaços fechados. Shoppings foram abertos antes dos parques.

O governo levou 14 meses para propor um programa de proteção social às famílias mais vulneráveis, complementar ao auxílio federal, aprovado há apenas uma semana, com o Bolsa do Povo. Os mais pobres tiveram que sair às ruas para obter alguma renda, aumentando o risco de contrair o vírus.

Nenhuma iniciativa foi tomada na questão da moradia, um fator essencial para possibilitar o isolamento social e higiene pessoal. Pelo contrário, durante a pandemia Doria propôs extinguir a CDHU, empresa habitacional do estado que deveria ter formulado um programa habitacional de emergência.

Despejos em massa de inquilinos de baixa renda, que não foram suspensos, provocaram um aumento da população em situação de rua e a superlotação das moradias onde familiares abrigaram os que ficaram sem teto. Não se promoveu um programa de melhorias habitacionais vinculado às condições sanitárias, como a instalação de caixa d’água, indispensável para garantir o abastecimento.

Nada se fez para propiciar um acesso gratuito à internet nas áreas mais vulneráveis em um momento em que conectividade se tornou indispensável para a educação e o trabalho online.

Enfim, o governo do estado mais rico do país não promoveu um leque de políticas públicas necessário para enfrentar a crise sanitária em múltiplos aspectos e o resultado está aí, com a marca dos 100 mil mortos.

Agora que a segunda onda entrou um quadro de estabilização em um patamar elevado e que o governo estadual resiste a atender a recomendação cientifica de mais restrições frente à possibilidade de uma nova onda, torna-se necessário adotar uma abordagem multidisciplinar para formular uma nova estratégia de enfrentamento da pandemia.

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