Nabil Bonduki

Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, foi relator do Plano Diretor e Secretário de Cultura de São Paulo.

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Nabil Bonduki
Descrição de chapéu Mobilidade

Ao vetar a lei contra os despejos, Bolsonaro se igualou a Doria na crueldade com os sem teto

Sanitaristas consideram o problema habitacional um dos fatores mais importante para prevenir doenças infecciosas transmitidas pelo ar

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Era óbvio para qualquer observador da questão social que a pandemia iria gerar efeitos perversos nas condições de moradia, particularmente entre os inquilinos de baixa renda.

Passados 17 meses, o que surpreende é a absoluta falta de iniciativas públicas, dos três níveis de governo, para enfrentar essa grave situação.

Os vetos do presidente Bolsonaro e do governo Doria às leis, muito tardiamente aprovadas no Congresso Nacional e na Assembleia Legislativa, que determinavam a suspensão provisória dos despejos dos inquilinos de baixa renda e das reintegrações de posse de ocupações acabam por selar, definitivamente, a absoluta perversidade desses governantes com os mais pobres.

Moradores em situação de rua em São Paulo
Moradores em situação de rua em São Paulo - Nabil Bonduki/Folhapress

Cansei de sugerir, nessa coluna, propostas para enfrentar o problema da moradia durante a pandemia: hotéis de quarentena; programa emergencial de habitação e saneamento; suspensão de despejos e reintegrações de posse; auxílio emergencial para inquilinos sem renda; melhorias em cortiços, etc.

Mas nada, absolutamente nada, foi feito pelos governos para atenuar o problema habitacional, que os sanitaristas consideram um dos fatores mais importante para prevenir doenças infecciosas transmitidas através do ar.

A redução da atividade econômica, com a paralisação parcial do comércio e serviços, efeitos inevitáveis do isolamento social, afetou os trabalhadores informais e os desempregados. Mas foi particularmente cruel para quem era também inquilino.

Sem renda, sobrevivendo com um auxílio emergencial de R$ 600, agora reduzido a R$ 275, esses locatários viveram um dilema que é clássico na questão da habitação: comer e alimentar (mal) sua família ou pagar o aluguel. O instinto de sobrevivência leva à 1ª opção. Sem proteção social, o destino inevitável de quem não paga aluguel é o despejo.

O inquilino que perdeu a renda ficou desprotegido e abandonado à própria sorte, como se vê a luz do dia no verdadeiro acampamento de sem tetos que virou o centro de São Paulo e como mostrou reportagem da Folha desse domingo.

A própria caracterização da população em situação de rua de São Paulo se alterou durante a pandemia. Tornaram-se cada vez mais frequente a presença de famílias, com mulheres e crianças, assim como de malas, sofás, colchões, brinquedos, mesas e outros utensílios utilizados por quem até pouco tempo vivia em uma moradia.

Outro dia observei uma senhora varrendo a calçada em volta da sua barraca de camping, no entorno do Cemitério da Consolação. Ao lado de outra barraca, uma mesa arrumada com toalha branca, um vaso com flores e brinquedos espalhado pela calçada...

Objetos pertencentes à população em situação de rua na região da Consolação, centro da capital paulista
Objetos pertencentes à população em situação de rua na região da Consolação, centro da capital paulista - Nabil Bonduki/Folhapress

Enquanto a recomendação sanitária era “fique em casa” e “lave as mãos”, milhares de inquilinos inadimplentes foram viver na rua, em novas ocupações de terra, em péssimas condições sanitárias, ou na casa de parentes, gerando maior aglomeração nessas moradias.

Não estamos falando de pouca gente. De acordo com o desatualizado Censo de 2010, existem no país, cerca de 10,5 milhões de domicílios alugados, 18,3% do total, onde residiam 31,6 milhões de pessoas. Nas regiões metropolitanas e grandes cidades, essa porcentagem cresce significativamente.

No município de São Paulo, 24,8% dos domicílios são alugados, onde vivem cerca de 2,5 milhões de pessoas, índice que nos dez distritos mais centrais (coroa de bairros no entorno da Sé e Republica), alcança 40,9% dos domicílios (Censo de 2010).

Desse contingente, a quantidade de inquilinos de baixa renda que gastam com aluguel mais de 30% da renda familiar (ônus excessivo com o aluguel), já vinha crescendo ao longo da última década, de acordo com as estimativas do déficit habitacional da Fundação João Pinheiro.

Em 2019, se tornou o principal componente do déficit habitacional acumulado, representando 52% do total, ou seja 3,1 milhões de domicílios. Com a queda de renda durante a pandemia essa situação se agravou.

Propostos pelo movimento Despejo Zero, os projetos de lei de suspensão temporárias dos despejos, vetados quase simultaneamente por Doria em 29/7 e por Bolsonaro em 4/8, poderiam ter atenuado a situação. Foram formulados no começo da 1ª onda da pandemia em 2020, e embora fossem uma medida emergencial, tramitaram a passo de tartaruga com a oposição dos deputados liberais, que postergaram ao máximo sua aprovação.

Os vetos mostram que presidente e governador se igualam no descaso à questão social, simbolizando a inoperância das atuais gestões públicas no enfrentamento do problema habitacional durante a pandemia.

Ao invés de formular um indispensável programa emergencial de habitação, Doria extinguiu a CDHU (Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano), enquanto Bolsonaro transformou o Programa Minha Casa Minha Vida no Casa Verde Amarela, praticamente eliminando o atendimento à Faixa 1, destinada à baixa renda.

Os efeitos desse descaso estão visíveis por aí. Novas ocupações de terra surgem semanalmente em glebas vazias, algumas já notificadas pela prefeitura por não cumprir a função social, como a ocupação Jorge Hereda, que está ameaçada de reintegração de posse. Se ocorrer, deixará 500 famílias sem abrigo.

Os espaços públicos do centro de São Paulo viraram um acampamento ao céu aberto. Praças, como a Marechal Deodoro e a Princesa Isabel, estão repletas de barracas de camping.

Baixios de viadutos e elevados, como o Minhocão, e calçadas, debaixo de qualquer marquise, se transformaram em dormitórios ao ar livre, com pessoas embrulhadas em cobertores, tentando se proteger contra o frio. O Padre Júlio e entidades de assistência lutam para dar um prato de comida e um calor para essas famílias.

Mas será que nossos governantes acham que isso pode continuar assim?

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