Nabil Bonduki

Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, foi relator do Plano Diretor e Secretário de Cultura de São Paulo.

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Nabil Bonduki
Descrição de chapéu Mobilidade

Carlos Neder, um gigante na luta pela saúde pública e participação social

É ironia do destino que um dos mais importantes formuladores do SUS tenha sido vítima da Covid-19

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Das 595 mil mortes causadas pela Covid-19, nenhuma foi para mim mais impactante do que a do médico Carlos Neder, que nos deixou nesse sábado (25).

É uma ironia do destino que um dos mais importantes formuladores e defensores do SUS e da saúde pública no país tenha sido vítima da Covid-19, exatamente no momento em que a sociedade entendeu, de forma quase unânime, a importância desse sistema de saúde pública que evitou que a tragédia da pandemia tivesse dimensões ainda maiores no Brasil.

homem branco e calvo sentado à mesa diante de um microfone; ele usa óculos e tem semblante sério
O à época vereador Carlos Neder, em foto de 2012 - Simon Plestenjak - 4.ago.12/Folhapress

Perdi um amigo e companheiro que com quem dividia muitos ideais. Desaparece um raro político que colocava os princípios éticos e os compromissos com a justiça social acima de interesses pessoais e eleitorais. É muito triste, ainda mais em um país onde princípios e ideais estão cada vez mais escassos na política.

Natural de Campo Grande (MS) e filho de um comunista perseguido pela ditadura, Neder começou cedo na militância. Integrou uma geração de sanitaristas que foi fundamental para a concepção da Reforma Sanitária, proposta que acabou se consolidando como o SUS.

Em 1976, estudante de medicina da USP, trancou a matrícula junto com seu colega Roberto Gouveia e foram para os bairros populares da zona leste de São Paulo. Tinham o duplo objetivo de apoiar a luta popular pela redemocratização e construir um movimento em defesa da saúde pública.

Essa ação política, baseada no princípio do direito universal à saúde, gerou a criação dos Conselhos Populares de Saúde da Zona Leste, embrião da concepção de participação social do SUS e um instrumento essencial para a organização popular nas periferias da cidade, tão bem registrada no clássico livro de Eder Sader, “Quando Os Novos Atores Entram Em Cena”.

Como muitos de nós, profissionais de saúde, da educação, da arquitetura e do direito que, no período da redemocratização buscaram reverter o caráter elitista dessas profissões para colocá-las a serviço de políticas públicas universais, Neder filiou-se ao PT e ingressou na política para fazer desse sonho uma realidade.

Em seu mestrado, defendido na Unicamp em 2001, em que ele analisou a trajetória dos movimentos de saúde, é possível identificar alguns dos princípios que regeram sua atuação política.

Ele defendia radicalizar a descentralização das políticas públicas de saúde, incorporando os conselhos gestores, com poder deliberativo, na administração, como mecanismo da democracia participativa. Nessa engenharia institucional, a potencialidade dos cidadãos seria valorizada.

O poder público deveria construir as políticas públicas junto com os representantes da sociedade, através de um planejamento participativo e transparente. A capacitação e a renovação das lideranças dos movimentos era essencial nessa estratégia, que ele chamou de “Cidadania Ativa”, que se tornou o nome de seu grupo político.

Como Secretário Municipal de Saúde (na gestão de Luiza Erundina), vereador e deputado estadual (1996-2019), ele colocou em prática essa visão, baseada na defesa do SUS, da justiça social, da participação e da cidadania, que está presente em muitos dos seus mais de 100 projetos de lei, dos quais 60 foram aprovados.

No projeto de Regionalização da Saúde, ele buscou diminuir as disparidades regionais, melhorar resolutividade, a integração e participação em âmbito regional. Foi apenas um dos inúmeros projetos de lei que ele apresentou nas áreas da saúde, educação, participação, que podem ser conhecidos em seu site.

Desse conjunto de leis, ressalto a que criou o Quesito Cor no SUS, antiga luta do movimento antirracista, e a criação dos conselhos gestores nos equipamentos do SUS, experiência que ele levou para outras setores, criando os conselhos gestores dos CEU’s e dos parques municipais, projeto em que fui coautor.

Neder foi intransigente no combate à corrupção, fiscalizando o executivo, sem poupar sequer as gestões do seu partido. Não se curvava a negociações fisiológicas e acompanhava de perto a administração, as licitações e a qualidade dos serviços públicos.

Devemos a ele investigações históricas na Câmara Municipal como a da compra de frango superfaturado (Frangogate), que levou à condenação de Paulo Maluf, e, entre outras, o Leve-Leite, o PAS, os planos privados de saúde e as organizações sociais da saúde (OSS).

Na Assembleia, destacou-se ainda pela defesa da ciência e tecnologia, liderando as frentes parlamentares em defesa das universidades, dos institutos de pesquisa e das fundações públicas. Sua atuação parlamentar foi tão intensa que o espaço é insuficiente para abordá-la.

Dividi com Neder as angústias e os questionamentos em relação aos caminhos que o PT vinha tomando. Mas ele tinha uma posição que transmitia para seu grupo: defender o PT para fora e disputar o PT para dentro. Neder nunca abdicou da disputa interna do PT e sempre a fez com o mesmo rigor ético com que fazia as disputas pela defesa do SUS.

Em conjunto com nossa antiga tendência Mensagem ao Partido, que surgiu após o chamado “mensalão”, Neder defendia a necessidade de uma profunda renovação do PT, incluindo a construção de um projeto político e conteúdo programático que atendesse os novos desafios impostos à esquerda no Brasil e no mundo e que evitasse que o PT caísse na tentação de reproduzir a cultura política predominante no país.

Neder se diferenciava da maioria dos políticos pela seriedade, pela lealdade, pelo compromisso, pela ética. Defendia com rigor seus princípios e deles não abria mão.

Como não se importava se, com isso, fosse perder votos, sempre teve dificuldade para arrecadar recursos para suas campanhas e para se eleger. Seus mandatos apenas foram possíveis devido à forte militância voluntária e ao apoio de movimentos sociais.

Não é por acaso que Neder fará muita falta, não apenas para seus amigos, companheiros e familiares, mas para a política brasileira.

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