Nabil Bonduki

Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, foi relator do Plano Diretor e Secretário de Cultura de São Paulo.

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Nabil Bonduki
Descrição de chapéu Mobilidade

Ciclistas e pedestres não deveriam mais morrer à beira da estrada, como vemos no caminho de Aparecida

Falta de segurança para a mobilidade ativa nas rodovias expõe descaso com a vida

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A sequência de atropelamentos de pedestres e ciclistas que circulavam pela rodovia Presidente Dutra em peregrinação ao Santuário Nacional de Aparecida mostra que não é só o negacionismo bolsonarista que desconsidera a importância da vida.

Assim como a irresponsabilidade do governo foi um dos responsáveis pelos 600 mil brasileiros mortos pelo Covid 19, a falta de segurança para a mobilidade ativa nas estradas expõe, com dramaticidade, o descaso com a vida que ainda prevalece na gestão rodoviária brasileira.

Nessa semana já foram registrados 18 atropelamentos no acostamento da Dutra, totalizando quatro mortos (dois ciclistas e dois pedestres) e 14 feridos, sendo três em estado grave. O número deverá crescer até o dia 12 de outubro, quando se comemora o dia de Nossa Senhora de Aparecida.

A tragédia dos que estavam indo agradecer as graças da santa nesses tempos difíceis e que encontraram a morte no meio do caminho não é um drama específico nem localizado. Ele dá visibilidade a um problema geral que precisa ser enfrentado com mais seriedade pelo poder público: o descaso com pedestres e ciclistas nas rodovias.

Romeiros caminham pela rodovia Presidente Dutra
Romeiros caminham pela rodovia Presidente Dutra - Rubens Cavallari/Folhapress,

Como em todo o sistema viário brasileiro, os veículos motorizados –automóveis, ônibus e caminhões –sempre tiveram absoluta prioridade nas estradas, deixando os demais modais à deriva, como se não existissem ou não merecessem atenção.

Desde Washington Luís, o governador que criou o lema “governar é abrir estradas”, a lógica que tem orientado os projetos e a implantação das rodovias simplesmente ignorou que pessoas e bicicletas também precisam nelas circular. Trata-se de outra manifestação da apropriação desigual do espaço público, onde o cidadão não motorizado é o último a ser considerado.

Nesse modelo, estrada é apenas o leito carroçável e, quando existe, o acostamento, faixa que deve ser compartilhada, perigosamente, por veículos motorizados (leves e pesados), bicicletas e pedestres. São raríssimas as rodovias que têm calçadas ou ciclovias.

Muitas estradas atravessam as zonas urbanas e acabam por fazer parte do seu sistema viário local, onde ocorrem conflitos entre os modais e as velocidades dos veículos. Em estradas que cruzam a zona rural, onde inexiste transporte coletivo, os únicos modais viáveis para a população de baixa renda, que não dispõe de automóvel, é a bicicleta e o andar a pé.

Esses cidadãos não têm lugar para circular com segurança, pois as estradas não destinam nenhum faixa para sua circulação. Embora a mobilidade ativa seja uma realidade, a lógica predominante continua a olhar exclusivamente para os modais motorizados.

Existem leis federais e estaduais que recomendam ou tornam obrigatória a implantação de infraestrutura de segurança para pedestres e ciclistas em rodovias, sobretudo nos trechos urbanos, mas, na prática, isso é ignorado.

Refletindo o desinteresse pela questão, o estado de São Paulo levou vinte anos para regulamentar por decreto a Lei Estadual 10.095, de 1998, que dispõe sobre o Plano Cicloviário do Estado.

A regulamentação, assinada apenas em 2018, determina que seja dada preferência à implantação de ciclovias (pista segmentada) nas estradas. No entanto, as concessionárias e o governo estadual são insensíveis a uma mudança de mentalidade, talvez porque ciclistas e pedestres não pagam pedágio.

Enquanto isso, os acidentes são frequentes e o uso da bicicleta é desestimulado.

Um exemplo de descaso ocorreu na recuperação da rodovia Governador Mário Covas, no trecho de São Sebastião da Rio-Santos, que ocorreu no início da década passada. A obra ignorou pedestres e bicicletas, salvo pela implantação de alguns radares de velocidade, que, aliás, foram desativados depois que Bolsonaro assumiu com um discurso contra a segurança no trânsito.

A estrada atravessa mais de 20 quilômetros de áreas urbanas junto, entre outras, às praias de Boraceia, Boiçucanga e Maresias. Nesses trechos, o tráfego de bicicletas e pedestres é intenso. Apesar disso, as calçadas são diminutas (às vezes, com 80 cm de largura) e não foram implantadas ciclovias. Os acostamentos, quando existem, são ocupados por veículos estacionados.

Apesar da dificuldade em mudar essa mentalidade, baseada na mobilidade motorizada, algumas iniciativas positivas devem ser destacadas.

O governo do estado do Mato Grosso encaminhou, em 2018, um projeto de lei determinando que todas as rodovias incluam uma ciclofaixa em seus projetos de pavimentação, em um processo de mudança gradativa, estudada caso a caso, para dar segurança aos ciclistas.

O estado implantou ciclovias nas obras de duplicação das rodovias MT-010 (saída para o Distrito da Guia) e da MT-251 (saída para a Chapada dos Guimarães). Na estrada da Chapada, além da ciclovia no canteiro central, foram previstas calçadas de cinco metros em cada lado da via.

Em Santa Terezinha de Itaipu, uma pequena cidade próxima a Foz do Iguaçu (PR), a prefeitura implantou uma ciclovia de 14 km ao longo da PR-874, uma estrada estadual que liga o centro ao balneário local, situado na represa de Itaipu. A obra, que custou R$ 150mil por km linear, teve repercussão nacional por demostrar a viabilidade da ideia.

Os múltiplos atropelamentos de romeiros deveriam servir de alerta para a necessidade de se formular um plano efetivo de reestruturação viária nas rodovias, priorizando a mobilidade ativa através da implantação gradativa de calçadas e ciclovias nas rodovias e estradas.

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