Nabil Bonduki

Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, foi relator do Plano Diretor e Secretário de Cultura de São Paulo.

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Nabil Bonduki
Descrição de chapéu Mobilidade clima

O que mais precisa acontecer para que a emergência climática seja levada a sério?

O negacionismo presente no país é muito maior do que imaginamos e está promovendo boiadas em série

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Após a chuva de sábado, oito casas construídas junto ao córrego Antônico desabaram em Paraisópolis, com um morto e quatro feridos. O nível dos oceanos sobe 3,1 mm por ano e o mar avança sobre o litoral de São Paulo, com ressacas cada vez mais fortes. As secas deste ano no Sudeste são as maiores em 91 anos. Nuvens de poeira cobriram dezenas de cidades no interior de São Paulo.

São evidências claras de que eventos extremos estão batendo à porta, mas isso não intimida o Congresso nem os setores empresariais que dão suporte ao retrocesso ambiental em andamento no país, estimulados pelo governo Bolsonaro e apoiados por vários estados e municípios.

Nem é preciso conhecer os relatórios do IPCC para entrever o futuro tenebroso que nos aguarda. Os desastres estão visíveis a olho nu: secas, enchentes, queimadas, nuvens de fumaça, erosões e desabamentos de encostas, tornados, ressacas. Tudo batendo recordes. É fácil perceber que o abismo se aproxima e mais rápido do que se imaginava.

Que as pessoas que vivem no limite da sobrevivência não saibam ou deem importância para isso é mais do que compreensível. Afinal, não se pode esperar que quem não tem onde morar nem sabe como se alimentará amanhã se preocupe com o futuro da vida humana no planeta ou com os desastres urbanos, que eles já vivem.

Agora, o Congresso Nacional, o governo e o setor empresarial deveriam ter outra postura. Mas o que vemos é que nada disso abala a maioria dos políticos e da elite econômica, que parecem acreditar que o meio ambiente suporta qualquer intervenção humana devastadora.

O negacionismo presente no país é muito maior do que imaginamos e está promovendo boiadas em série. Ao invés da emergência climática ser levada a sério e gerar uma estratégia para mitigar seus efeitos, o que se vê é uma sucessão de barbaridades, que vão muito além da queimadas e desmatamento na Amazônia, único tema ambiental que tem grande visibilidade.

Preocupado com os efeitos eleitorais da crise energética (e, talvez, dos negócios que isso possa proporcionar), Bolsonaro anunciou a intenção de renovar o atual parque de usinas térmicas de carvão, uma das mais poluentes e que mais emite gases de efeito estufa da matriz elétrica, ao custo de R$ 20 bilhões.

Foi necessário o BNDES, onde ainda existe alguma racionalidade, vetar o financiamento. Mas será que os competentes técnicos do banco resistirão?

A incorporadora que atua na Riviera de São Lourenço, entre muitas que atuam no litoral norte de São Paulo, dá continuidade a um empreendimento que, embora possa ter sido exemplar quando foi concebido há 40 anos, desconsidera a emergência climática e o avanço do mar, promovendo mais desmatamento e ocupação em uma região de fragilidade ambiental.

Já o Congresso Nacional está colocando mais uma azeitona nessa empada negacionista, com impactos de grande dimensão. Aprovou a flexibilização da regra que define as Áreas de Proteção Permanente (APPs) nas zonas urbanas, prevista no Código Florestal, transferindo essa responsabilidade para os municípios.

O Código Florestal (Lei 12.651/2012) estabelece faixas de proteção junto aos cursos d’água, em áreas rurais e urbanas, que variam do mínimo de 30 m a 150.500 m, proporcionais à largura dos leitos d’água. A própria lei estabelece exceções para uma eventual regularização de assentamentos de interesse social.

Essas faixas, já muito detonadas nas áreas urbanas consolidadas, são essenciais para garantir a mata ciliar, proteger os rios e córregos de erosão e criar corredores de biodiversidade em áreas urbanas. São indispensáveis para ampliar a permeabilidade do solo e prevenir enchentes e desabamentos de encostas, eventos extremos que serão cada vez mais frequentes e intensos, como se viu sábado em Paraisópolis.

No entanto, desde 2012, deputados que representam interesses imobiliários tentam alterar esse dispositivo, retirando a regra da órbita federal e descentralizando-a para os municípios. Nesse ano, finalmente, conseguiram esse intento.

Em agosto, a Câmara Federal aprovou o PL 2510/2019 estabelecendo que, em áreas urbanas, leis municipais (plano diretor e normas de uso e ocupação do solo) “passam a determinar a largura das faixas marginais de qualquer curso d’água natural que delimitem a faixa de passagem de inundação, ouvidos os conselhos de meio ambiente”.

O PL foi ao Senado que, essa semana, pressionado pela oposição e pelos ambientalistas, atenuou o dispositivo, estabelecendo que “em áreas urbanas consolidadas a legislação municipal poderá definir faixas marginais distintas (da lei federal), assegurada a largura mínima de 15 metros”. Melhorou (muito pouco), mas o PL retornará à Câmara e ainda poderá ser alterado.

Embora a legislação de uso e ocupação do solo seja de competência municipal, a definição das faixas mínimas das APPs, assim como de inúmeros aspectos ambientais, precisa ser estabelecida em nível nacional, podendo eventualmente o poder local ser mais rigoroso.

O Brasil tem 5.567 municípios, a maioria pequenos e sem corpo técnico. Prefeitos e câmaras municipais são extremamente suscetíveis às pressões do poder econômico e dos interesses fundiários. Ademais, a rede hídrica não obedece aos limites administrativos, correndo-se o risco dessas faixas de proteção serem diferentes em municípios limítrofes.

É evidente que a intenção do PL é reduzir as APPs urbanas, com o aval dos municípios. Será mais uma boiada ambiental que fará o país ficar ainda mais suscetível aos eventos extremos, pois serão pouco os municípios que serão capazes de resistir à pressão imobiliária.

É claro que alguns poderão, através de seus planos diretores e leis específicas, tratar adequadamente seus fundos de vale. Mas são exceções.

O Plano Diretor Estratégico de São Paulo (PDE), por exemplo, estabeleceu que a rede hídrica é um dos elementos estruturadores do planejamento da cidade e que as faixas devem respeitar os limites definidos no Código Florestal. Mas se a lei em tramitação no Congresso for aprovada, há o risco de esse dispositivo ser alterado na eventual revisão do PDE.

O PDE criou, nas APPs urbanas, o Programa de Recuperação de Fundos de Vale, objetivando proteger nascentes e reflorestar áreas devastadas, incluindo a implantação de parques lineares. Só se admite obras e intervenções, com cuidados especiais, em caso de interesse social.

No entanto, pouco disso tem sido implementado. E, ao contrário do que estabelece a lei, a prefeitura tem até mesmo aprovado novos empreendimentos imobiliários em APPs situadas em áreas consolidadas onde os cursos d´agua estão canalizados, desrespeitando as faixas previstas no Código Florestal e no PDE.

O que será mais necessário para que a emergência climática seja levada em conta nas políticas urbanas?

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