Nabil Bonduki

Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, foi relator do Plano Diretor e Secretário de Cultura de São Paulo.

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Nabil Bonduki
Descrição de chapéu Mobilidade

Além de projetar edifícios icônicos, Ruy Ohtake foi um arquiteto com preocupações sociais e ambientais

Arquiteto levou para comunidade pobre a ideia de que o direito à arquitetura é de todos

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Ruy Ohtake é conhecido por algumas obras marcantes do centro expandido de São Paulo, a área da cidade onde vive a elite econômica e cultural da cidade, como os hotéis Renaissance e Unique e o edifício comercial onde fica o Instituto Tomie Ohtake.

Esses são apenas alguns dos 300 projetos que inventou, onde buscou romper com o racionalismo e brutalismo da escola paulista, da qual fez parte, trazendo formas mais ousadas, com cores e curvas.

Mas não é sobre o arquiteto dessas obras que eu gostaria de falar para homenagear o querido Ruy Ohtake. Quero destacar seu compromisso com uma arquitetura voltada para a justiça social e para o equilíbrio da urbanização com o meio ambiente.

O arquiteto Ruy Ohtake em meio as estantes de livros em seu apartamento
O arquiteto Ruy Ohtake em meio as estantes de livros em seu apartamento - Lalo de Almeida/Folhapress/02.12.03

Em 2003, uma revista publicou uma entrevista com arquiteto, que faleceu hoje, onde uma declaração gerou uma forte repercussão negativa. O arquiteto afirmou: "O que acho mais feio em São Paulo é Heliópolis".

A frase causou protestos, pois soou como se o arquiteto da "carambola envidraçada violeta", como o edifício que abriga o Instituto Tomie Ohtake é conhecido, à época um ícone arquitetônico da nova avenida Faria Lima recém-inaugurada como um símbolo de uma São Paulo segregada, estivesse ofendendo os moradores da maior favela da cidade, para exaltar sua própria obra.

Ruy, conhecido por suas ideias políticas progressistas, teve que se explicar. Disse que havia sido mal interpretado. "O que eu quis dizer foi que o mais feio na cidade era a diferença entre bairros ricos e pobres – a diferença entre o bairro e Heliópolis, a maior favela".

O episódio marcou o início de uma nova vertente na carreira de Ohtake. Na semana seguinte, João Miranda, líder comunitário de Heliópolis, ligou para o arquiteto, não para cobrá-lo pela declaração infeliz, como fez a esquerda arquitetônica, mas para lhe fazer um pedido: "Se é feio, por que você não nos ajuda a deixar o lugar mais bonito?".

Ao responder afirmativamente à Miranda, o arquiteto se viu diante de um desafio até então inédito: enfrentar "arquitetura real", como ele chamava os bairros populares que cresceram sem a participação dos arquitetos e, ainda, se defrontar com uma comunidade organizada que exige participar das decisões de projeto, algo que os profissionais da velha guarda não gostam nada.

No início, Ruy propôs uma intervenção que, para muitos, pareceu uma maquiagem urbana: o reboco e a pintura colorida das fachadas das casas da favela. Mas foi apenas o início de um longo relacionamento com a comunidade, que durou até hoje, representada pela União dos Núcleos e Associações de Moradores de Heliópolis e São João Clímaco (Unas).

Entre as inúmeras contribuições de Ruy com Heliópolis, uma das mais relevante foi a concepção e concretização, realizada em estreito diálogo com os representantes da favela, do Polo Educativo e Cultural de Heliópolis, que inclui uma biblioteca pública, um centro cultural com cinema e galeria e espaço para feira de produtos artesanais, além de uma escola técnica. Quando o prefeito Fernando Haddad (PT) quis implantar um CEU em Heliópolis, ele já estava quase pronto.

Trabalhando voluntariamente, Ohtake se orgulhava de fazer projetos que pudessem dar dignidade a uma comunidade pobre, criando espaços de qualidade para atividades que garantissem direitos sociais. Foi assim na concepção dos "redondinhos", conjunto habitacional de blocos redondos coloridos, voltado para a mesma comunidade.

Ele se revoltava com a ideia de que por ser destinada para os mais pobres, a arquitetura habitacional precisava ser pobre.

Muitos podem não gostar dos "redondinhos" ou alegar que eles custaram mais do que o teto do financiamento da moradia popular. Mas é indiscutível eles representam uma tentativa de inovar na concepção de projetos habitacionais que, há décadas, reproduz, salvo importantes exceções, um desenho de bloquinhos e casinhas, padrão BNH, verdadeiros "no where" sem identidade.

Ao inovar no desenho de um conjunto habitacional, Ruy levou para uma comunidade pobre a ideia de que o direito à arquitetura é de todos e que a liberdade criativa, a surpresa e a inovação projectual, que caracterizam o conjunto de sua obra, não podem ficar restritas aos territórios da elite.

Conheci Ruy quando eu era estudante e ele apresentou, em uma palestra na FAU, nos anos 1970, o Parque Ecológico do Tietê, talvez o projeto urbano ambiental mais importante de São Paulo.

Ao propor um parque linear ao longo do principal rio da cidade, o arquiteto rompeu com a tradição paulistana, consolidada no Plano de Avenidas nos anos 1930, de implantar avenidas nos leitos ou nas margens dos rios e córregos, como ocorre nas marginais. O tempo mostrou como essa proposta foi acertada em contraposição ao desastre das marginais.

Na última vez que conversei com Ruy, há alguns meses, falamos sobre a continuidade do Parque de Tietê em direção a Mogi das Cruzes, projeto em que estava envolvido. Ele nos deixou, mas esperamos que um projeto tão importante como esse não fique na gaveta.

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