Nabil Bonduki

Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, foi relator do Plano Diretor e Secretário de Cultura de São Paulo.

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Nabil Bonduki
Descrição de chapéu Mobilidade

O que está por trás do estranho acordo entre Ricardo Nunes e Bolsonaro sobre o Campo de Marte?

Projeto de lei abre mão definitivamente de R$ 24 bilhões sem que exista nem sequer um estudo financeiro

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Desde 1958, a Prefeitura de São Paulo trava uma disputa judicial com o governo federal sobre a propriedade da gleba de mais de 2,2 milhões de metros quadrados onde está situado o Campo de Marte, na zona norte. O terreno é municipal e foi ocupado pela União, como uma espécie de troféu de guerra, após a derrota dos paulistas em 1932.

Depois de um longo processo judicial, que tramitou em todas as instâncias do judiciário, em última instância, o STF (Supremo Tribunal Federal) reconheceu o direito da municipalidade sobre a área. E condenou a União a indenizar o município pela ocupação ilegal da gleba durante quase nove décadas.

O cálculo da indenização, acordado entre as partes em uma câmara técnica formada pela AGU (Advocacia Geral de União) e PGM (Procuradoria-Geral do Município), chegou a R$ 49 bilhões.

Avião pousa na pista do Campo de Marte, na zona norte de São Paulo
Avião pousa na pista do Campo de Marte, na zona norte de São Paulo - Rubens Cavallari - 3.set.2021/Folhapress

O município poderia reivindicar mais, pois sobre o valor de mercado de uma gleba imensa por 88 anos, no coração da zona norte, incidem correção monetária, juros e, ainda, uma indenização por perdas e danos causados ao município pela ocupação irregular pela União de um terreno que não lhe pertencia. Mas é um bom valor de referência.

Em julho, o prefeito Ricardo Nunes (MDB) e o presidente da Câmara Municipal, vereador Milton Leite (DEM), foram a Brasília propor ao presidente Bolsonaro trocar toda a indenização a que São Paulo tem direito pela dívida da prefeitura com o governo federal, que está em R$ 25 bilhões.

Por esse acordo, a prefeitura abriria mão da quantia de R$ 24 bilhões, ou seja, de metade do que teria direito de receber. Apesar disso, o prefeito alega que o acordo seria vantajoso, pois a União poderia judicializar o valor da indenização e, nesse caso, o município levaria mais tempo para receber esse dinheiro.

É claro que, para a gestão Ricardo Nunes e sua base de apoio na Câmara Municipal, é um ótimo acordo, em uma visão imediatista. A prefeitura está pagando mensalmente à União R$ 250 milhões pelo serviço da dívida, que apenas será quitada em 2028. Liberado desse pagamento, o prefeito terá um aporte anual de R$ 3 bilhões para gastar como quiser, se o Legislativo aprovar o acordo sem condicionalidades.

Mas abrir mão de R$ 24 bilhões é o melhor para o futuro da cidade? O tema é uma questão de Estado, não do governo de plantão. Por isso, deveria merecer um debate aprofundado, envolvendo o executivo, legislativo, conselhos participativos, órgãos de controle e a sociedade como um todo. É exatamente o que não está sendo feito.

Na última segunda-feira (22), o prefeito e o presidente se reuniram em Brasília, fora da agenda pública de ambos, para tratar do assunto. No dia seguinte, terça (23), às 17h, o prefeito enviou o um singelo projeto de lei à Câmara Municipal, de apenas um artigo, através do qual o executivo fica autorizado a renunciar ao valor da indenização que eventualmente superar o débito da municipalidade com a União.

A tramitação desse projeto de lei, em que o município abre mão definitivamente de, pelo menos, R$ 24 bilhões, sem que exista nem sequer um estudo financeiro que justifique essa operação, foi à jato, sem nenhuma transparência.

Na quarta (24), foi considerado lido em plenário. Foi publicado no Diário Oficial na quinta (25). No mesmo dia, Milton Leite o encaminhou para a CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) e demais comissões de mérito, que não tiveram tempo de debatê-lo, pois na sexta (26) foi convocado um congresso de comissões, excrescência parlamentar utilizada para legitimar projeto de lei sem debate público. Em seguida, às 19h, foi aprovado em primeira votação, recebendo 44 votos a favor, oito abstenções e nenhum voto contrário, 74 horas após dar entrada no legislativo.

A leviandade com que os vereadores trataram uma questão que envolve uma batalha judicial do município de 63 anos e um recurso quase equivalente a um orçamento municipal, que poderia ser utilizado em um plano de desenvolvimento urbano futuro para a cidade, só não surpreende porque essa tem sido a praxe na atual legislatura na Câmara Municipal.

Mas há algo estranho no ar, além da falta de compromisso dos vereadores com o debate sério e aprofundado sobre a melhor forma de tratar a questão.

Por que o governo Bolsonaro, que poderia empurrar com a barriga o pagamento dessa indenização e que não tem folga fiscal, está abrindo mão de receber R$ 3 bilhões da prefeitura de São Paulo em 2022, quando está empenhado em adiar o pagamento dos precatórios para alimentar seu caixa em ano eleitoral?

Por que Bolsonaro está aceitando sangrar seu caixa para alimentar o caixa da Prefeitura de São Paulo, supostamente aliada ao governador João Doria (PSDB), que enfrentará o presidente na eleição de 2022?
Qual é o acordo sobre a destinação futura da área, sobretudo os trechos ocupados pela aeronáutica, que deveriam ser devolvidos para o município?

Por que Nunes e Leite querem aprovar esse projeto de lei, que, em tese, poderia ser positivo para a cidade, de maneira tão açodada, sem debate público e transparência?

Por que nem mesmo a oposição ao prefeito votou contra um projeto de lei em que a prefeitura renuncia uma receita futura significativa, sem nenhuma condicionalidade e sem sequer saber o que se fará com o ganho adicional de caixa que o município auferirá, a curto prazo, por esse acordo?

Espera-se que o Legislativo cumpra seu papel e não aprove esse PL, em segunda votação, sem que se promova previamente um amplo debate público sobre os diversos aspectos que um acordo sobre o Campo de Marte envolve.

Entre as questões que precisam ser debatidas está o valor da indenização e, por consequência, da renúncia de recursos que o município está abrindo mão, o destino da receita adicional a ser obtida e a utilização futura da gleba, considerando a possível desativação da pista para aeronaves de asa fixa, que daria novas perspectivas para o desenvolvimento urbano da região, aspecto que precisa ser acordado com a União.

O Tribunal de Contas do Município e o Ministério Público precisam também se manifestar para que possamos ter segurança de que essa operação será a melhor para São Paulo.

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