Nabil Bonduki

Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, foi relator do Plano Diretor e Secretário de Cultura de São Paulo.

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Nabil Bonduki
Descrição de chapéu Cinema mudança climática

Planeta não será destruído rápido, como no filme com Leonardo DiCaprio, mas aos poucos

Mensagem do filme aponta para o risco do negacionismo

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A convite de Marcelo Lima, um entusiasta dos cinemas de rua que teve a coragem de, em plena pandemia, reabrir o antigo Cinearte, no Conjunto Nacional, reconfigurado como Cine Marquise, fui assistir à estreia nos cinemas de "Não Olhe para Cima", uma sátira escrita e dirigida por Adam McKay, que será lançado na plataforma de streming da Netflix na véspera do Natal.

O roteiro não é lá grande coisa, mas vale pela mensagem que passa para o grande público, mostrando em tom dramático e divertido como o negacionismo científico e a promiscuidade entre o poder público, e o setor privado podem afetar o futuro do planeta.

Uma doutoranda de astronomia, interpretada por Jennifer Laurence, ao monitorar supernovas, visualiza a cauda de um cometa gigante, com cem quilômetros de diâmetro. Seu orientador, um astrônomo estrelado por Leonardo DiCaprio, descobre que o cometa estava em rota de colisão com a Terra.

Leonardo DiCaprio em cena do filme "Não Olhe para Cima", de  Adam McKay
Leonardo DiCaprio em cena do filme "Não Olhe para Cima", de Adam McKay - Niko Tavernise/Divulgação

Se nada fosse feito, em seis meses ele se chocaria com o oceano Pacífico, provocando tsunamis de 1,5 quilômetro de altura, terremotos de 10 a 11 graus na escala Richter e a destruição completa da vida no planeta. Há 66 milhões de anos, um asteroide colidiu com o planeta, extinguindo os dinossauros e muitos outros seres vivos.

Ficção científica de gênero catástrofe, entre uma sátira e uma comédia, o filme se utiliza de uma ocorrência praticamente impossível de acontecer (segundo Amy Mainzer, da Nasa, um fenômeno com esse só acontece uma vez a cada 100 milhões de anos) para alertar sobre o descaso em relação à emergência climática e outros desastres ambientais.

(Spoilers a seguir)

No filme, apesar de a descoberta ter sido revisada e confirmada por outros cientistas, inclusive pelo coordenador de defesa planetária da Nasa, a presidenta dos EUA, Meryl Streep, não dá grande importância para a possível catástrofe, como alguns presidentes fizeram em relação à Covid. Afinal, como disse o presidente do Brasil, Jair Bolsonaro (PL), todos em algum dia vão morrer!

Na imprensa, a descoberta é tratada com descrédito, com jornalistas duvidando da gravidade da situação. O público prefere amenidades de celebridade a acreditar que a Terra poderia ser destruída em seis meses.

Mas a presidenta, ao perceber que uma ação midiática poderia melhorar sua fraca popularidade, resolve agir. Monta uma megaoperação para desviar a rota do cometa, usando foguetes e astronautas, solução recomendada pelos cientistas.

Quando a operação começa, o CEO de uma grande empresa privada de tecnologia e celulares, um dos homens mais ricos do mundo, convence a presidenta a interrompê-la, pois descobre que o cometa tem minérios muito valiosos. Propõe desintegrá-lo quando ele se aproximar da Terra, para se apropriar de suas riquezas.

A proposta, desenvolvida pela empresa com o apoio de uns poucos cientistas, não é revisada pelos pares, mas é propagandeada por uma forte campanha de mídia, que convence muitos. Os pais de uma jovem cientista que denuncia a fragilidade dessa operação se recusam a recebê-la em casa, argumentando que ela está prejudicando o país, por ser contra a criação de empregos e a geração de riqueza.

Quando o cometa fica visível a olho nu no céu, a sociedade se divide entre os que acreditam no risco iminente e os negacionistas, que seduzidos pelo lema do marketing da operação privada ("Don’t Look Up", como no titulo do filme), recomendam "olhar para baixo", negando as evidencias científicas.

A operação falha e a vida como conhecemos na Terra é destruída.

A sátira é exagerada, tem um humor escrachado e caricaturiza os personagens, mas alerta para uma catástrofe que não vai ocorrer em seis meses, nem de uma hora para outra, em um único evento extremo, mas está acontecendo todos os meses, em diferentes lugares do planeta.

A mensagem do filme é óbvia (até demais) e está relacionada com o negacionismo em relação às evidências científicas, a prevalência dos interesses privados sobre o poder público e a ganância do capitalismo que não tem limites quando vislumbra uma oportunidade de bons negócios.

Como McKay afirmou, ao radicalizar uma ocorrência, o filme alerta para questões concretas. Basta ler o noticiário do final de semana, com as enchentes no Sul de Bahia e os mais de 30 tornados que devastaram cinco estados americanos, para ver que partes do planeta estão sendo destruídas aos poucos.

Ao assistir o filme, lembrei-me do desastre que a empresa Salgema, atualmente de propriedade da Braskem, provocou em Maceió (AL), na maior tragédia ambiental urbana do Brasil.

Na década de 1960, grandes quantidades de sal-gema foram encontradas no subsolo da área urbana do município e, em 1976, a empresa começou a cavar minhas na região, há cerca de mil metros de profundidade com a anuência das autoridades locais. Na época, geólogos alertaram para o risco da operação, mas não foram levados a sério, sendo considerados inimigos do progresso.

Após três décadas de exploração do subsolo, as edificações de cinco bairros começaram a rachar e, em 2018, a cidade sofreu um tremor parecido com um terremoto. Alguns meses depois, o Serviço Geológico Brasileiro confirmou que as 35 minas da Braskem haviam desestabilizado o solo de uma área urbana densamente povoada, que precisava ser desocupada por colocar em risco dezenas de milhares de moradores.

Cerca de 15 mil moradias foram interditadas, provocando a remoção forçada de 57 mil pessoas. Os bairros de Pinheiro, Mutange, Bom Parto, Bebedouro e parte do Farol se transformaram uma cidade fantasma, com dezenas de ruas interditadas.

Milhares de edifícios, incluindo casas, conjuntos habitacionais e edifícios verticais, que estavam em uso até três anos atrás, estão abandonados e em ruínas.

Fair Bluff, pequena cidade da Carolina do Norte (EUA), sofre processo semelhante. Atingida pelo furacão Matthew, em 2016, entrou em processo de abandono. As estradas cederam, edifícios públicos e fábricas foram destruídos. Um quarto das casas foi inundado. Dois anos depois, um outro furacão, o Florence encontrou pouco o que destruir. A população caiu à metade e a cidade está insolvente.

Esse cenário de devastação e de abandono está presente em várias regiões dos Estados Unidos, afetadas por eventos extremos relacionados à crise climática, como furações, tornados, secas e incêndios florestais, como a série de reportagens de Marina Dias e Lalo de Almeida está mostrando.

"Don’t Look Up" é uma sátira para ser levada a sério. Não que um cometa esteja prestes a nos atingir, mas porque mostra como o negacionismo científico e o capitalismo selvagem nos levam, pouco a pouco, para um cenário de devastação.

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