Nabil Bonduki

Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, foi relator do Plano Diretor e Secretário de Cultura de São Paulo.

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Nabil Bonduki
Descrição de chapéu Coronavírus

Pela vida, o Carnaval de rua deve ser cancelado em SP e em todas as cidades brasileiras

No Brasil, além da epidemia de influenza, o número de casos de Covid está aumentado

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Como Secretário Municipal de Cultura, em 2015 e 2016, coordenei a equipe da Secretaria e de outros órgãos da prefeitura que organizaram o Carnaval de rua de São Paulo no momento do seu maior crescimento.

Em 2013, no início da gestão Haddad, quando meu antecessor, Juca Ferreira, provocado pelo Manifesto Carnavalesco, promoveu a regulamentação do Carnaval de rua, apenas 42 blocos saíram às ruas. Em 2016, esse número chegou a 384, com um crescimento de 914%.

A prefeitura que, até então, promovia apenas os desfiles do Sambódromo e reprimia a ocupação das ruas pelos blocos, ignorando uma manifestação cultural que tem raízes antigas na cidade, passou a apoiar o Carnaval de rua, tornando São Paulo uma das referências do carnaval no país.

Multidão segue bloco na zona sul de São Paulo
Cortejo do pernambucano Galo da Madrugada toma a avenida Pedro Álvares Cabral, no Ibirapuera, na zona sul de São Paulo - Eduardo Knapp - 25.fev.2020/Folhapress

Foi com grande entusiasmo e empolgação que participei desse processo cultural, que se insere na crescente ocupação do espaço público que vem mudando a paisagem de São Paulo, priorizando uma cidade para as pessoas.

Por essa razão, é com tristeza que defendo a tese de que o Carnaval de rua de 2022 deve ser cancelado não só em São Paulo, mas em todas as cidades brasileiras.

Desde março de 2020, os setores responsáveis da sociedade e que prezam a vida têm, baseados em evidências científicas, defendido a adoção de medidas de prevenção para conter o coronavírus.

As recomendações básicas são: evitar aglomerações, manter distanciamento e usar máscaras. Após a vacinação alcançar patamares elevados, passou-se a exigir, em eventos públicos, a comprovação de vacina.

Conheço bem o Carnaval de rua, como gestor público, pesquisador e folião. É impossível garantir qualquer um desses quatro requisitos nos blocos.

Carnaval de rua é, por natureza, um evento de aglomeração e de proximidade entre as pessoas. Cantar, pular, dançar, se abraçar, paquerar, beijar são da sua natureza, assim como tomar cerveja. Não por acaso, os patrocinadores são as cervejarias. E quem bebe, quem canta, quem beija não usa máscara.

Não existe controle capaz de assegurar essas prevenções. Também é impossível exigir comprovante de vacinação, pois o evento que é livre e aberto, sem cercas, percorre as ruas da cidade. São centenas de blocos e milhões de pessoas.

A prefeitura acaba de divulgar que 696 blocos se cadastraram em São Paulo, um recorde. Vários desses blocos reúnem dezenas de milhares de pessoas. No total, estariam nas ruas alguns milhões de foliões, de todos as regiões do país e do exterior. O mesmo vale para os grandes polos carnavalescos, como Rio de Janeiro, Salvador, Recife e Olinda.

Como muitas cidades já cancelaram o Carnaval, como Belo Horizonte e 71 municípios do estado de São Paulo, a tendência é de ainda maior concentração naquelas que insistirem na realização do evento.

O argumento de que grande parte da população já está vacinada e que as internações estão baixas não justifica a imprudência. Um quarto da população não tomou nem a primeira dose e um terço não tomou a segunda. E sabe-se que muita gente faleceu mesmo com a 2ª dose.

Ademais, na avaliação do risco Carnaval, não se pode usar os dados da vacinação e internação de cada cidade individualmente, pois as pessoas circularão por todo o país. Mesmo que São Paulo tenha uma alta taxa de vacinação (82%), circularão pela cidade pessoas de regiões com taxas inferiores. O mesmo ocorrerá nas demais cidades. Por isso a decisão sobre esse tema deveria ser nacional.

Os casos de Covid estão se acelerando em todo o mundo, em decorrência da variante ômicron. Pela primeira vez, os novos casos superaram um milhão de contaminados em único dia. O Carnaval tem grande afluxo de turistas e, como mostrou reportagem da Folha, a exigência de passaporte de vacina nos aeroportos é deficiente.

No Brasil, além da epidemia de influenza, os casos de Covid estão aumentado aceleradamente, fenômeno obscurecido pelo apagão de dados do Ministério da Saúde.

Nas unidades do Einstein, na última semana, 80% dos casos positivos era da ômicron e a taxa de positividade cresceu de 0,6% para 8%. O monitoramento da Abrafarma (associação que reúne grandes redes farmacêuticas) mostrou um aumento de positivos de 524 em 1 de dezembro, quando 10 mil exames foram feitos, para 5.334, do total de 31.332 exames realizados 29 de dezembro.

Embora, aparentemente, a letalidade e as hospitalizações provocadas pelo ômicron sejam baixas, sobretudo na população vacinada, isso ainda não está totalmente comprovado. Ademais, grandes aglomerações, com uma população apenas parcialmente vacinada, podem gerar novas variantes.

Segundo Rosana Leite de Melo, chefe da Secretaria Extraordinária de Enfrentamento à Covid-19, "é arriscada a realização do Carnaval não apenas pelo aumento do número de casos, mas porque as aglomerações poderiam gerar o surgimento de uma outra cepa".

A Covid tem surpreendido até os especialistas nesses dois anos. No início, duvidaram da extensão da pandemia. Depois da primeira onda, parecia que tinha passado, mas aí veio a variante gama (quem não se lembra do drama de Manaus). E, depois, a delta apareceu na Índia e agora a ômicron na África do Sul.

Está claro que não podemos relaxar. O Comitê Científico do Consórcio do Nordeste recomendou o cancelamento do Réveillon e do Carnaval. Na mesma linha, o governador Rui Costa decidiu que não haverá Carnaval na Bahia em fevereiro: "precisamos ter responsabilidade com a saúde e a vida das pessoas. Realizar o Carnaval no modelo tradicional, em larga escala, se mostra inviável."

Frente a esse quadro, vários artistas, como Daniela Mercury, Preta Gil e Tiago Abravanel se anteciparam e cancelaram seus blocos.

Alguns prefeitos estão considerando a possibilidade de cancelar o Carnaval de rua e autorizar o das Escolas de Samba, nos sambódromos, e as festas em salões fechados. Isso também é muito discutível, pois além do risco sanitário, gerará uma discriminação de renda. Quem pode pagar se diverte e os pobres são excluídos.

No Réveillon do Rio de Janeiro, o prefeito Eduardo Paes foi nessa linha, utilizando a própria segregação urbana para excluir os mais pobres. Promoveu o espetáculo de fogos em Copacabana, mas paralisou o transporte coletivo. Só os moradores da zona sul ou os motorizados (renda mais alta) puderam participar.

Frente à autorização do governo de Pernambuco para a realização de festas fechadas, o secretário de Cultura do Recife reagiu "é muito pertinente a pergunta de como pode ser feito um Carnaval assim, porque ele não pode ser de poucos. O Carnaval que a gente conhece e deseja é o de todos".

Os prefeitos Ricardo Nunes (SP) e Eduardo Paes (RJ) devem decidir o que fazer nesta semana, depois de consultar seus comitês científicos. Espera-se que prevaleça o bom senso e que o Carnaval seja cancelado em todo o país.

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