Nabil Bonduki

Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, foi relator do Plano Diretor e Secretário de Cultura de São Paulo.

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Nabil Bonduki

Dark kitchens, que vieram para ficar, são boas para as cidades?

Cozinha comercial utilizada exclusivamente para operações de delivery se espalham

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Dentre as mudanças provocadas pela pandemia que vieram para ficar nas cidades, uma das mais impactantes foi a explosão do delivery por aplicativo. Intimamente vinculado a ele, se propagam as chamadas dark kitchens.

Dark kitchen, também conhecida como ghost kitchen (cozinha fantasma), é uma cozinha comercial utilizada exclusivamente para operações de delivery.

O local é equipado com os equipamentos necessários para preparar refeições, mas não tem salão e recepção para atendimento de clientes, identificação do estabelecimento da fachada do imóvel e não permite que se veja a maneira como a comida é preparada.

Dark kitchen, cozinha comercial utilizada exclusivamente para operações de delivery, na capital paulista - Eduardo Anizelli - 2.jul.2021/Folhapress

As origens das dark kitchens são controversas e, provavelmente, surgiram em vários locais ao mesmo tempo. Segundo a BBC, a proposta apareceu em Londres em torno de 2018. Outros apontam que as dark kitchens surgiram na Índia. O certo é que se expandiram com a popularização dos aplicativos de comida e viraram uma febre na pandemia.

No Brasil, algo semelhante com outras características, existe há muito tempo. As mais difundidas, desde sempre, foram as pizzarias que apenas atendem para retirada ou entrega. Mas elas funcionam de portas abertas, com identificação da marca e atendendo os clientes no local que, em geral, podem presenciar a preparação das pizzas.

Outro exemplo brasileiro é o "China in the box", criado em 1994 e que sempre funcionou apenas para entrega. Mas o "China" nada tem de fantasma: adota um design em suas lojas que deixam a cozinha visível e foi o primeiro estabelecimento a colocar vidros na cozinha para que os clientes pudessem observar a limpeza e a preparação dos alimentos.

De acordo com a Abrasel, existem sete tipos de dark kitchen, incluindo restaurantes que para evitar sobrecarga de serviço nos horários de pico, criaram uma segunda cozinha "ghost" em um local próximo para atender o delivery.

Mas a maior novidade, do ponto de vista urbano, é o surgimento de um novo ramo imobiliário: os coworking de dark kitchen. Nesse modelo de negócio, que se expande rapidamente pelo Brasil, dezenas de cozinhas são concentradas em um mesmo endereço, sem marca, identificação ou transparência.

Em uma edificação situada em locais de fácil acesso, bem localizados em relação ao perfil da clientela, dezenas de pequenos espaços, com cerca de 20 m2, são preparados para receber cozinhas industriais. Em um único prédio em São Paulo funcionam 22 cozinhas!

"É uma atividade imobiliária", afirmou Gustavo Nogueira, diretor de Operações da Smart Kitchen em entrevista para a Rede Globo. O empresário entrega o espaço com pontos de água, esgoto, gás, energia e a estrutura de exaustão externa para quem quer montar uma "ghost kitchen".

"Quem aluga, monta a cozinha. O meu cliente, que vai abrir um estabelecimento, precisa obter o alvará de funcionamento municipal e o alvará de fiscalização sanitária. São as licenças básicas que ele precisa para operar."

A atividade vem se multiplicando. Uma das maiores empresas do ramo abriu o primeiro prédio em 2018, com oito cozinhas. Agora já tem 131, em quatro cidades. Espera chegar a 646 cozinhas até 2025. Outra empresa tem seis prédios em São Paulo, quatro no Rio de Janeiro, quatro em Belo Horizonte e um em Brasília.

As dark kitchen permitem uma significativa redução de custos, em relação a um restaurante "normal". Sem atendimento presencial, diminuem o aluguel, os salários e encargos trabalhistas com garçons, atendentes e faxineiros. Os gastos com mobiliário, decoração e manutenção do salão são eliminados.

Os restaurantes podem espalhar pela cidade, com baixo investimento, uma rede de franchising de suas marcas, tornando-as acessíveis para um amplo mercado consumidor. E o "cozinheiro", terceirizado, pode trabalhar com diferentes marcas e tipo de produtos, em uma flexibilização que amplia a rentabilidade do empreendimento.

Em um país de crise econômica, as oportunidades abertas por essa alternativa não são desprezíveis. Do ponto de vista econômico, a dark kitchen é muito vantajosa para a cadeia produtiva que trabalha com refeições prontas.

Mas a questão que precisa ser debatida é se a ampla difusão das dark kitchen é boa para a vida urbana, para o meio ambiente, para a segurança alimentar da população e para a gastronomia?

É possível identificar inúmeros aspectos negativos, que precisam ser analisados e enfrentados:

1. A concentração de dezenas de cozinhas em um único local gera grande impacto no entorno, com barulho dos exaustores, fumaça, odor e enorme movimento de motoqueiros.

Em São Paulo, esse tipo de atividade tem sido implantada em zonas mistas, onde convivem residências com o comércio, sendo permitidos os coworkings e restaurantes. Mas a enorme concentração de cozinhas industriais, atividade que inexistia há alguns anos, não é regulamentada.

O poder público precisa formular uma legislação específica regulando onde e em que condições essa atividade pode ser permitida.

2. Embora as dark kitchens sejam uma alternativa econômica para os empresários do setor, elas podem acelerar o fechamento de restaurantes físicos, o que é danoso para a vida urbana, particularmente em metrópoles como São Paulo que se destaca pela gastronomia. Durante a pandemia, mais de 25% dos restaurantes fecharam as portas, segundo a Abrasel.

Restaurantes são espaços de encontro e sociabilidade. Embora privados, fazem parte da vida urbana, que enriquece uma cidade. Sempre haverá quem queira frequentar restaurantes, mas a concorrência das dark kitchen, com custos menores, podem contribuir para fechar restaurantes e para a desertificação do espaço público. Isso precisa ser evitado.

3. A generalização do delivery por aplicativo, irmão siamês das dark kitchens, gerou um crescimento exponencial de embalagens descartáveis, com graves consequências ambientais e elevação do custo da coleta dos resíduos, que onera os orçamentos municipais.

É necessário instituir a logística reversa das embalagens utilizadas no delivery. A Lei Nacional de Resíduos Sólidos determina que o gerador deve ser o pagador, ou seja, as dark kitchens devem pagar a coleta das embalagens por elas gerado. Ou utilizar embalagens retornáveis padronizadas e uma logística que permita sua reutilização.

4. Durante muito tempo, lutou-se para que os restaurantes permitissem a visita de suas cozinhas. Em São Paulo, a lei municipal 11.617/1994 tornou isso obrigatório e legislação similar existe em vários municípios.

Nas dark kitchens, no entanto, o cliente sequer sabe onde as refeições são preparadas. Legislação específica precisa garantir mais transparência nesse tipo de estabelecimento.

5. O relativo baixo custo do delivery é obtido, entre outros, pela exploração do entregador, mal remunerado, sem garantia trabalhista e que arrisca a vida nas ruas para entregar a comida que ele não pode comer.

Todos esses aspectos precisam ser considerados em uma legislação específica sobre dark kitchen e delivery por aplicativo que trata da questão sob todos esses pontos de vista.

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