Nabil Bonduki

Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, foi relator do Plano Diretor e Secretário de Cultura de São Paulo.

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Nabil Bonduki
Descrição de chapéu Alalaô

Uma tristeza de Carnaval, com irresponsabilidade, exclusão, omissão e ausência de política pública

Folia se transformou em um negócio comercial privado, sem controle sanitário e infraestrutura pública

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Em 2022, estamos presenciando um tremendo retrocesso na política pública de Carnaval nas principais cidades brasileiras, como São Paulo e Rio de Janeiro.

As prefeituras resolveram se omitir, sem formular, em diálogo com todos os setores, uma política pública global para o Carnaval na atual conjuntura, que levasse em conta tanto o controle da pandemia como a importância cultural da principal festa brasileira.

Conduzida sob uma lógica liberal, talvez nem consciente mas coerente com a lógica geral dessas gestões, o Carnaval de 2022 quase sem interferência do Estado, se transformou em um negócio comercial privado, sem controle sanitário, sem organização, planejamento e sem infraestrutura pública.

Foliões durante bloco de carnaval na região central do Rio de Janeiro
Foliões durante bloco de carnaval sem autorização na região central do Rio de Janeiro - Eduardo Anizelli- 27.fev.2022/Folhapress

Estamos vivendo o pior dos mundos em termos de gestão pública: irresponsabilidade sanitária, omissão na fiscalização e exclusão dos que não querem descumprir as regras e/ou não podem pagar para curtir a folia.

Cancelaram o Carnaval de rua, aquele que é livre, democrático e gratuito, sem diálogo com os blocos e dar nenhuma perspectiva para um segmento cultural que tem uma crescente importância na vida e no espaço público das cidades e que ficou desamparado.

Adiaram o desfile dos sambódromos para abril, atendendo aos interesses das Ligas de Escola de Samba, permitindo ainda que essas agremiações promovessem eventos privados em suas quadras, que estão acontecendo sem controle sanitário.

Finalmente, as prefeituras permitiram grandes e imponentes festas privadas de Carnaval, sem limite especial de público, com shows de artistas famosos, amplamente divulgadas e pagas, muitas delas a peso de ouro, como mostrou a Folha.

Ao permitir esse formato, o poder público estimulou a organização de festas de toda natureza, em qualquer lugar e a qualquer preço, sem nenhum controle pois, afinal, se alguns podem, todos podem se divertir.

E a pandemia? Dane-se a pandemia, afinal é Carnaval, onde nada é proibido! Parece que todos querem relaxar e gozar, até mesmo o poder público que é responsável pela saúde da população, apesar do desgaste que isso pode gerar.

Com uma média diária de óbitos por Covid em torno de "apenas" 700 brasileiros (em um só dia, três vezes o total de mortos da tragédia de Petrópolis!), parece que precaução é coisa do passado. Afinal, como disse o presidente negacionista, um dia todos vão morrer.

Assim, corre-se o risco de se ver interrompida a queda nos números de mortos e de casos, verificada nas duas últimas semanas. Pior, de ver surgir, espero que não, uma nova variante, que poderá ser apelidada de "Carnivale".

Como alertou Rosana Leite de Melo, chefe da Secretaria Extraordinária de Enfrentamento à Covid-19, "é arriscada a realização do Carnaval não apenas pelo aumento do número de casos, mas porque as aglomerações poderiam gerar o surgimento de uma outra cepa".

O avanço da vacinação é relevante para reduzir as internações e mortes, mas não garante 100% de proteção. Ademais 25% da população ainda não tomou a segunda dose e só 34% tomou a dose de reforço. Lembrando que mesmo quem tem sintomas moderados ou leves da Covid —em decorrência da vacina— pode ter sequelas que custam para o SUS e para a saúde da população.

Como a situação se assemelha a um "liberou geral", apesar do cancelamento oficial do Carnaval de rua, as prefeituras perderam a autoridade para evitar concentrações no espaço público, como está ocorrendo no Rio de Janeiro.

Como a Folha informou, diversos grupos se reúnem nas ruas, orientados pelas redes sociais e vão fazendo a festa, parados ou em curtos desfiles. O clima é de improviso pois "sem estrutura de banheiros, esquema especial de limpeza ou cadastramento de ambulantes, a folia tem deixado as ruas da região central com lixo e xixi".

É um enorme retrocesso na organização do Carnaval de rua, que se estruturou nas últimas décadas para garantir a infraestrutura necessária para festas no espaço público. Mas, do ponto de vista do controle epidêmico, a folia na rua, se não evoluir para grandes multidões, ainda é menos perigosa do que as festas em ambiente fechado, onde a transmissão é mais intensa.

Isso porque a irresponsabilidade está prevalecendo nesses eventos privados. Após a Folha divulgar que a Mangueira não estava exigindo comprovante de vacinação em um evento em sua quadra, várias agremiações, como a própria Mangueira, Salgueiro e Viradouro, proibiram acesso do jornal às suas festas, em uma espécie de censura.

Em festas de Carnaval em ambiente aberto ou fechado, a exigência do uso de máscaras e distanciamento é uma piada. Onde já se viu pular Carnaval sem poder beber cerveja ou beijar?

Na primeira coluna do ano, defendi, com muita tristeza, o cancelamento do Carnaval de rua, por óbvias razões sanitárias. A ocupação cultural do espaço público, especialmente no Carnaval, nos moldes em que foi regulamentado em São Paulo durante a gestão Haddad, com a minha contribuição, significou uma conquista para o direito à cidade e à cultura.

Como o avanço do ômicron revelou, suspender o Carnaval era uma medida necessária. Mas na mesma coluna alertei para a necessidade de também se proibir as festas privadas e os desfiles nos sambódromos.

Dias depois, as prefeituras de São Paulo e do Rio de Janeiro, seguidas pelas demais cidades brasileiras, cancelaram o Carnaval de rua, sem oferecer alternativas aos blocos, adiaram o desfile das escolas de samba para abril, mas não criaram restrição para as festas privadas, fora aquelas para "inglês ver": comprovante de vacina, uso de máscara e distanciamento.

Criou assim, uma estranha sensação de ambiguidade, onde ninguém mais sabe qual é o comportamento que deve ser obedecido.

Ao abdicar de formular uma política coerente para o Carnaval de 2022, agindo no improviso e privilegiando algumas modalidades que transformam a cultura em negócio, o poder público transformou o evento em um vale-tudo, onde o lucro é privado e os prejuízos, que virão no futuro, em vidas e despesas na saúde pública, serão de responsabilidade do Estado.

Se eu estiver excessivamente cauteloso, espero que esteja, e a pandemia terminar sem novos sobressaltos até abril, as prefeituras precisam chamar os blocos de Carnaval para o diálogo na perspectiva de recuperar o evento de rua ainda este ano, mesmo que em formato reduzido.

A retomada do Carnaval de rua, democrático, livre e gratuito é indispensável para garantir de forma organizada e com infraestrutura adequada, o direito à cultura, à folia e à cidade. ​

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