Nabil Bonduki

Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, foi relator do Plano Diretor e Secretário de Cultura de São Paulo.

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Nabil Bonduki

STF abre o caminho para São Paulo banir os agrotóxicos

Tribunal decidiu que municípios têm competência para evitar ou minimizar o uso de produtos que causam riscos em potencial à qualidade de vida

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Há alguma luz no final do túnel.

Enquanto o governo Bolsonaro e o Congresso liberam o uso de agrotóxicos, o STF (Supremo Tribunal Federal) decidiu que os municípios têm competência para evitar, neutralizar ou minimizar o uso de produtos que causam riscos em potencial à qualidade de vida e ao meio ambiente.

A acórdão dá esperança para quem busca, através de leis municipais, proteger a saúde, o ambiente, a agricultura orgânica e a alimentação saudável dos cidadãos, minimizando os impactos que a proliferação dos venenos estão causando.

Máquina lança agrotóxico em plantação na Chapada dos Parecis
Máquina lança agrotóxico em plantação na Chapada dos Parecis - 4.mar.2021 - Lalo de Almeida/Folhapress

A aprovação de agrotóxicos acelerou no governo Bolsonaro. Desde 2019, foram autorizados 1.529 novos registros, 562 em 2021. É uma boiada monstruosa. O total de pesticidas aprovados pelo atual governo representa 33% dos registros feitos desde 2000.

O que já está péssimo, poderá piorar. Em fevereiro, a Câmara dos Deputados aprovou, em regime de urgência, o Projeto de Lei nº 6.299/2002, que torna mais fácil a liberação de agrotóxicos. O PL voltou ao Senado, para a aprovação final.

Para a bancada ruralista, as mudanças trazidas pela nova lei irão dar mais celeridade na aprovação de novos agrotóxicos. Para especialistas, o projeto, apelidado de "Pacote do Veneno", traz muitos retrocessos, como:

  1. Possibilitar o registro de agrotóxicos nocivos e cancerígenos, ao excluir vedação contida na legislação em vigor. Para o Instituto Nacional do Câncer (Inca) o PL ameaça a saúde dos brasileiros;
  2. Transferir a decisão sobre a aprovação de novos agrotóxicos apenas para o Ministério da Agricultura, tornando consultiva a opinião do Ministério do Meio Ambiente e da Anvisa;
  3. Mudar o termo "agrotóxico" para "pesticida", mascarando a nocividade dessas substâncias;
  4. Conferir Registro Especial Temporário para agrotóxicos não analisados no prazo estabelecido pela nova lei, desde que já tenham sido aprovados em algum país da OCDE;
  5. Remover a autonomia dos órgãos de saúde para publicar análises sobre agrotóxicos em alimentos.

Frente a esse "liberou geral", que atende ao caráter predador do governo, a possibilidade de municípios restringirem o uso de veneno em seus territórios é essencial e precisa ser utilizada para preservar a saúde, o ambiente, a agricultura orgânica e a segurança alimentar da população.

No entanto, muitas iniciativas nesse sentido têm esbarrado em uma interpretação equivocada da Constituição e da legislação, que julga que o município não tem competência para atuar nessa questão.

Isso ocorreu em São Paulo. Em 2013, apresentei, em coautoria com outros vereadores, um PL que proibia o uso e a comercialização de 13 agrotóxicos proibidos em seus países de origem. Aprovado pelo legislativo, o PL foi vetado pelo prefeito.

Menos sorte teve o vereador Toninho Vespoli que, em 2018, apresentou projeto semelhante, barrado como ilegal ainda na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), sob o argumento de que "o herbicida 2.4-D encontra-se registrado e licenciado no âmbito federal e estadual, indicando que foram cumpridas as recomendações contidas na legislação".

A CCJ argumentou que o PL, "ao restringir a utilização do indigitado herbicida, afrontou a legislação federal que rege a matéria, não podendo ser considerado como de caráter suplementar".

Teses como essa foram superadas pela decisão tomada pela 2ª Turma do STF que, em novembro, negou recurso da empresa Dow Agrosciences Industrial contra lei do município de Saudades (SC), que impôs restrições ao uso do herbicida à base de 2.4-D.

Relator do processo, em julgamento iniciado em 2017, o Ministro Celso de Mello (já aposentado) argumentou que município pode legislar sobre o assunto. Após quatro anos, o julgamento foi concluído com o voto-vista do ministro Gilmar Mendes, que seguiu o relator e confirmou a competência municipal.

O julgamento foi ao STF em decorrência da Dow Agrosciences Industrial ter interposto agravo regimental contra decisão de Mello, que manteve acórdão do TJ de Santa Catarina, que considerou não haver vício ou inconstitucionalidade na Lei 1.382/2000 do município de Saudades, que restringe o uso do 2.4-D, para proteger culturas desenvolvidas no seu território e prevenir danos ambientais futuros.

Para o relator, "o exercício da competência do município está fundado na defesa e na proteção da saúde e na tutela da integridade do meio ambiente local" e a competência se legitima desde que o município legisle para tutelar e regular assuntos de interesse estritamente local, nos limites do artigo 30, inciso I, da Constituição Federal.

O relator destacou que incide no caso o postulado da precaução, que visa "evitar, neutralizar ou minimizar riscos em potencial à qualidade de vida e ao meio ambiente" e que a lei municipal reconheceu, apoiada em pareceres técnicos, a potencial nocividade do agrotóxico.

Esses motivos levaram o Supremo a reconhecer a competência de todos os entes da federação para legislar sobre proteção ambiental. Para Melo, a "incolumidade do meio ambiente não pode ser comprometida por interesses empresariais, nem ficar dependente de motivações meramente econômicas".

O Estatuto da Cidade, ao estabelecer que "o plano diretor deverá englobar o território do município como um todo" (Art. 40º § 2o), consolidou a tese de que o município deve legislar sobre toda sua área, incluindo a zona rural.

Em São Paulo, banir os agrotóxicos do território municipal é uma decorrência direta dos objetivos do Plano Diretor Estratégico de 2014, que recriou a Zona Rural (27% do território) integralmente contida na área de proteção ambiental e dos mananciais.

O objetivo do Polo de Desenvolvimento Rural Sustentável, criado pelo PDE, é "promover atividades econômicas e gerar empregos na zona rural de modo compatível com a conservação das áreas prestadoras de serviços ambientais".

Isso é incompatível com pulverizar veneno em uma região que abastece de água 5 milhões de pessoas, impactando a saúde da população. A agricultura orgânica é o caminho natural do desenvolvimento rural de uma área de proteção que está próxima de um dos maiores mercados consumidores para esses produtos do mundo.

A lei 16.140/2015, de minha coautoria, tornou obrigatório o uso de produtos orgânicos na alimentação escolar, gerando um imenso mercado cativo para essa produção. O Projeto "Ligue os Pontos" busca aproximar produtores rurais e consumidores.

São razões que justificam o banimento dos agrotóxicos em São Paulo, medida que está amplamente respaldada pelo acórdão do STF. Embora a produção rural seja pequena, leis e ações exemplares e vanguardistas adotadas no município tendem a se reproduzir pelo país.

Talvez pelos municípios possa surgir uma nova resistência ao liberou geral de venenos que o governo Bolsonaro está promovendo.

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