Nabil Bonduki

Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, foi relator do Plano Diretor e Secretário de Cultura de São Paulo.

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Nabil Bonduki

Por que a Prefeitura de São Paulo não vende de vez o estádio do Pacaembu?

Ainda que errada, transação a preço de mercado e com melhor contrapartida geraria melhores resultados do que outorga feita

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Antes que alguém pense o contrário, ressalto que sou contrário à venda do estádio do Pacaembu, assim como me opus enfaticamente à sua concessão, nas condições em que foi feita.

O Pacaembu é um ícone da cidade, de inestimável valor afetivo, cultural, arquitetônico e esportivo, e deveria continuar sendo um equipamento público, voltado para a cultura, lazer e esporte de toda a população de São Paulo, mesmo que isso custasse um pouco para a prefeitura.

Vista aérea do estadio do pacaembu com obra de demolição do tobogã
Obras de demolicao do tobogã do estádio do Pacaembu - Eduardo Knapp - 30.set.2021/Folhapress

Com uma boa gestão, poderia auferir receitas adicionais, desde que não comprometesse suas finalidades, e ser mantido adequadamente, como o Theatro Municipal, a Biblioteca Mário de Andrade e o Centro Cultural São Paulo.

Mas, como mostraremos a seguir, o estádio não é mais um equipamento público. Ele foi entregue a uma empresa privada, por 35 anos, com uma outorga muito abaixo do seu valor, para ser, basicamente, explorado comercialmente.

Faço a pergunta no título da coluna porque a modelagem e contrato de concessão do Pacaembu, feita na gestão Doria/Bruno Covas, são tão pouco vantajosos para o interesse público que a venda do equipamento, a preço de mercado e com uma melhor contrapartida para o município, ainda que equivocada, geraria melhores resultados do que essa parceria, onde só o privado se beneficia.

O programa de atividades, as obrigações previstas e a forma como a concessionária está utilizando o equipamento, com anuência ou omissão da prefeitura, desvirtua inteiramente seu uso público, transformando-o em um empreendimento voltado quase exclusivamente para atividades privadas lucrativas. A concessão apenas aparentemente mantém o Pacaembu como um equipamento público.

A prefeitura entregou para a Allegra Pacaembu, por 35 anos, uma área de 150 mil metros quadrados, localizada na região mais chique da cidade, por R$ 115,4 milhões mais 1% do faturamento anual. A área onde está a Cidade Matarazzo, próxima à avenida Paulista, igualmente com restrições patrimoniais e com um quinto da área (30 mil metros quadrados) custou o dobro, em valores atualizados.

Essa outorga paga é bastante inferior ao que custaria, nessa região hipervalorizada, apenas o terreno necessário para construir o edifício comercial de 44 mil metros quadrados que ocupará o espaço do antigo tobogã, com shopping, restaurantes, centro de convenções, hotel, galeria de arte, centro de reabilitação esportiva, estacionamento e outras atividades lucrativas, voltado para turistas e paulistanos de alta renda.

Mas esse edifício é apenas uma parte do potencial lucrativo do estádio. No último mês, sem autorização dos órgãos patrimoniais, ou seja, cometendo um crime, a concessionária pavimentou o gramado do estádio (!) e sobre ele construiu uma sofisticada tenda, chamada de Pavilhão Pacaembu, com tratamento acústico e climatização, para a realização de eventos com até 9.000 espectadores.

O site da empresa, em tom de propaganda, afirma que "com uma infraestrutura completa e modelar, o Pavilhão está instalado sobre o gramado do estádio, pronto para atender todos os portes de eventos – feiras, festas, apresentações, experiências, gastronomia e entretenimento".

Não serão eventos públicos, mas pagos a preço de ouro. Os ingressos para o primeiro show, da cantora Gal Costa, custam de R$ 195 a R$ 395. Convenhamos que não é para "pessoas diferenciadas", como as que frequentavam o tobogã, cujo ingresso era de R$ 20. No Dia das Mães, está previsto um almoço especial, com a presença do cantor Padre Fabio de Melo, ainda sem preço.

Embora o tombamento e o contrato de concessão estabeleçam que devam ser mantidos jogos de futebol no estádio, é notório que eles serão excepcionais. O Pavilhão veio para ficar, a menos que o Conpresp e Condephaat consigam impedir sua manutenção.

O projeto inclui, ainda, a construção de dois salões, com capacidade para cerca de 1.500 pessoas, ocupando o talude original, debaixo das arquibancadas laterais, que já começaram a ser demolidas. A intervenção descaracteriza o projeto original do Escritório Técnico Ramos de Azevedo – Severo e Villares, baseado no aproveitamento do sítio natural para assentar o estádio, e vai criar mais espaços para serem locados.

Finamente, também será explorado comercialmente o Complexo Esportivo do Pacaembu, com 25 mil metros quadrados, que era utilizado pelos paulistanos para aulas e atividades esportivas gratuitas. Embora a propaganda oficial afirme que a programação gratuita terá continuidade, isso é uma meia verdade.

De fato, o contrato determinou que a concessionária ceda para a prefeitura, gratuitamente, um reduzido número de horas para uso dos cidadãos, enquanto ele explorará comercialmente o restante do tempo.

Considerando um período de 15 horas por dia (das 6h30 às 21h30), sete dias por semana, o ginásio de tênis, o ginásio de futebol e basquete e as salas de ginastica serão cedidos para a prefeitura em 11% do tempo (12 horas por semana), enquanto a piscina e a pista de atletismo ficam com a prefeitura apenas 33% do tempo (cinco horas por dia). No tempo restante, será uma academia privada.

Como se vê, o Pacaembu terá futebol excepcionalmente, pouca atividade gratuita para a população e muitos espaços explorados com o objetivo de lucro, voltados para um público da alta renda. Efetivamente, perdeu seus usos originais.

Não contente com o que já recebeu, a concessionária, alegando desequilíbrio econômico financeiro no contrato, está solicitando um desconto de 71% na outorga, a extensão do prazo de concessão para 50 anos e o aumento em cerca de 50% a área concedida, incluindo a Praça Charles Miller no contrato. Verdadeiro absurdo.

O processo administrativo em que o assunto estava sendo tratado tramitava sob sigilo na Secretaria de Desestatização e Parcerias, sem nenhuma transparência. Após denúncia feita pela Rede Globo, na semana passada, o prefeito Ricardo Nunes, que afirmou desconhecer a censura e as tratativas, mandou retirar o sigilo.

O Pacaembu necessitava de reforma e modernização. Não critico o projeto, que é interessante do ponto de vista arquitetônico e urbanístico, como são outros espaços privados frequentados pela elite paulistana sem participação do poder público.

Enquanto faltam espaços de cultura, lazer e esportes para a maioria da população, o Novo Pacaembu não será mais um lugar de uso público, acessível para todos, mas voltado sobretudo para as classes privilegiadas. Ao invés de reduzir as desigualdades socioterritoriais, a prefeitura está contribuindo para aumentá-la.

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