Nabil Bonduki

Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, foi relator do Plano Diretor e Secretário de Cultura de São Paulo.

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Nabil Bonduki
Descrição de chapéu Mobilidade

Privatizar as cadeiras do Pacaembu é mais um legado maldito de Doria

A própria propaganda da loja e as justificativas emitidas por prefeitura e concessionária são provas irrefutáveis de que um crime patrimonial foi cometido

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Não durou seis anos o desastrado reinado de João Doria. O gestor. O João trabalhador. O fenômeno eleito prefeito no 1º turno. Que quis ser presidente antes de se sentar na cadeira de alcaide. Que se vestia de gari. Que sentava na cadeira de roda. Que traiu seu criador. Que não hesitou em se aliar com o inominável para se eleger, criando o Bolsodoria.

Alguém vai me dizer, por que bater em cachorro morto? Doria é carta fora do baralho. Foi abandonado até pelos seus aliados. Ganhou a prévia do PSDB e não levou. Foi rejeitado pelo eleitorado. Está sendo humilhado pelo seu sucessor, que só está lá por causa dele, mas que nem cita seu nome.

Doria está de pijama, talvez em Miami, mas ele continua vivo, vivíssimo nas políticas de caráter patrimonialista e privatista que implementou, na prefeitura e no estado, e nos políticos que nos legou, como prefeito e governador. Que precisam ser superadas e superados como ele.

Cadeiras das arquibancadas laranja e amarela do estádio do Pacaembu foram colocadas à venda por loja de móveis - Moacyr Lopes Junior - 12.set.2016/Folhapress

O patrimonialismo é um conceito desenvolvido por Max Weber para definir um Estado sem distinções entre os limites do público e do privado, típico dos regimes absolutistas. Raymundo Faoro, em "Os Donos do Poder", mostrou as raízes profundas do patrimonialismo no Brasil, desde o regime colonial, e que chegou até nossos dias como uma confusão entre o público e o privado.

A concessão do Pacaembu foi a primeira aprovada sob Doria e continua gerando seus efeitos nefastos. Depois da pavimentação do gramado para a implantação de uma tenda de eventos pagos, da demolição das arquibancadas laterais para exploração econômica do espaço e da tentativa de se apossar da praça Charles Miller, o último episódio promovido pela concessionária foi a privatização das cadeiras do Pacaembu.

Elas foram colocadas à venda em uma loja por valores entre R$ 1.499 e R$ 1.799, como um "patrimônio histórico portátil" que deixou de ser público para enfeitar os salões de festa e dos jantares suntuosos da elite paulistana. É um caso simbólico do patrimonialismo brasileiro e do desmonte da política de patrimônio cultural de São Paulo, promovido por Doria e seus sucessores: Bruno Covas, Ricardo Nunes e Rodrigo Garcia.

O caso se tornou a cereja do bolo da entrega dos bens públicos para o usufruto privado. Do desvirtuamento dos conselhos do patrimônio, Condephaat e Conpresp, transformados em puxadinhos dos gabinetes do governador e do prefeito para facilitar a concessão de bens públicos para o privado, com regras frouxas, em um verdadeiro laissez faire.

Na venda das cadeiras, a própria propaganda da Tok&Stok e as notas de justificativa emitidas pela prefeitura e pela Allegra (significativamente, nenhuma autoridade ou técnico aceitou falar por elas) são provas irrefutáveis de que um crime patrimonial foi cometido.

Se elas não tivessem valor como patrimônio e pudessem ser descartadas como lixo, não seriam propagandeadas pela loja como "cadeiras originais do seu, do meu, do nosso Pacaembu". O valor afetivo, elemento relevante para distinguir o que deve ser preservado, está evidente na própria propaganda.

É esse valor afetivo que leva o objeto ser desejado por ricaços que topam pagar quarenta vezes o preço de uma cadeira nova similar, enquanto o resto da torcida fica chupando o dedo.

Ao oferecer ao comércio o objeto como item de colecionador, a Allegra fez questão de ressaltar que "as peças sofreram poucas intervenções e que foram mantidas as características originais, como numeração e eventuais arranhões".

Ora, se foi tomado o cuidado de manter as características originais, como uma espécie de "pátina do tempo", é porque elas tinham, no estado em que estavam, valor patrimonial. A alegação de que as cadeiras não são as mesmas da época de construção do estádio e que, portanto, não tinham relevância, demonstra total desconhecimento das teorias de proteção.

A prefeitura, ao elogiar a ação da Allegra em vez de proteger um bem público, se auto-denunciou. Afirmou que "trata-se de uma iniciativa sócio-ambiental com o objetivo de enaltecer a história do futebol no estádio mais emblemático da cidade de São Paulo".

Mas se as cadeiras são importantes para a memória do "estádio mais emblemático da cidade", como diz a prefeitura, porque ela autorizou a concessionária a destruí-las ou a comercializá-las para privados, em vez de obrigar sua recolocação em, ao menos, parte do estádio, de modo que pudesse ser usufruída por todos?

Nada nessa operação para em pé.

A alegação da Allegra de que o reaproveitamento das peças evitou seu descarte, querendo dar um sentido de sustentabilidade à iniciativa, é uma falácia. Segundo a pesquisadora Stela Da Dalt, existiam no estádio 10.831 cadeiras amarelas e laranjas, das quais apenas 673 (6%) foram colocadas à venda. Mais de dez mil foram para o lixo.

A doação do lucro para a Gol de Letra é outra ilegalidade. Embora respeitada, a ONG é uma entidade privada, que receberá recursos públicos sem licitação. Centenas de outras fazem trabalhos relevantes. A concessionária quis dar um verniz social e angariar simpatia para uma ação que contribui para a destruição de mais uma parte da memória do Pacaembu.

Tudo isso ocorre sob o olhar complacente dos conselhos de preservação, que se limitam a dizer que tudo que está sendo feito é legal e que o projeto foi aprovado. Sabe-se lá como foram aprovados...

Não fosse a Câmara Municipal também um puxadinho da prefeitura ou, como alguns comentam, a prefeitura um puxadinho do presidente da Câmara, a concessão do Pacaembu e sua gestão para Allegra Pacaembu já estariam sob investigação de uma CPI que, sendo séria, mostraria crimes patrimoniais irreversíveis cometidos com o apoio dos herdeiros de Doria.

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