Nabil Bonduki

Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, foi relator do Plano Diretor e Secretário de Cultura de São Paulo.

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Nabil Bonduki

Com R$ 31,6 bi em caixa, SP vive degradação urbana sem precedentes

Sociedade deve participar do plano para aplicar a disponibilidade financeira que se obteve sacrificando o patrimônio municipal

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Se a qualidade de vida de uma cidade fosse medida, apenas, por quanto ela tem aplicado nos bancos e na sua perspectiva de arrecadação futura, São Paulo estaria vivendo o melhor momento de sua história recente. Infelizmente, como pode ser visto nas ruas, a situação está longe disso.

O balanço patrimonial do município fechou o mês de maio com R$ 31,6 bilhões em caixa, dos quais, segundo a gestão Nunes, apenas R$ 20,2 bilhões estão comprometidos com empenhos relativos a despesas com realização prevista até 31 de dezembro de 2022.

Por outro lado, a Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2023, que tramita no Legislativo, aponta para uma perspectiva de arrecadação recorde de mais de R$ 90 bilhões.

Vista aérea de casas irregulares e barracos
Ocupação Jorge Hereda, na zona leste de São Paulo; crise habitacional na cidade se agravou na pandemia - Danilo Verpa/Folhapress

A saúde financeira da prefeitura seria, em tese, uma boa notícia. Por quase duas décadas a cidade viveu enforcada em dívidas, geradas sobretudo por um pacote de obras viárias superfaturado promovido pela gestão Paulo Maluf (1993-1996).

A dívida foi consolidada em 1999 pela gestão Pitta, que fez um acordo com a União se comprometendo a pagar 13% da arrecadação municipal. Da gestão Marta à gestão Haddad, passando por Serra e Kassab (2001-2016), o pagamento da dívida comprometeu seriamente a capacidade de investimento da prefeitura.

Ainda assim, devido aos altos juros, a dívida continuou crescendo e atingiu, em 2016, o impagável valor de R$ 72 bilhões. O quadro apenas se alterou quando o ex-prefeito Haddad, depois de três anos de negociação com o Congresso e o governo federal conseguiu, já no final de sua gestão, reduzir retroativamente os juros da dívida, que caiu 63%, para R$ 27 bilhões.

A prefeitura não apenas passou a pagar uma parcela menor, como recuperou a capacidade de endividamento, o que permitiria formular um plano de investimento, previsto no Plano Diretor, para enfrentar de forma planejada, os graves problemas urbanos, sociais, ambientais, habitacionais e de mobilidade da cidade.

Ao contrário, desde 2017 (gestão Doria/Bruno Covas), optou-se por seguir um receituário fiscalista, restringindo os investimentos. Obras que Doria recebeu em estágio avançado, como 12 CEUs (Centros Educacionais Unificados), foram paralisadas por vários anos e ficaram prontos apenas em 2020. Muitos ainda nem estão funcionando integralmente.

Para reduzir as despesas e auferir ganhos financeiros, a prefeitura passou a conceder ao setor privado, por longos prazos, espaços e equipamentos municipais de uso público, recebendo à vista uma outorga financeira, que reforçou seu caixa.

Em consequência, a gestão de lugares simbólicos, como o Pacaembu, o Ibirapuera, o Anhangabaú, os mercados municipais e, até mesmo, o meio fio das ruas, com a Zona Azul, passou para o controle de empresas privadas por várias décadas. Por fim, a atual gestão entregou 80% da área do Campo de Marte para quitar inteiramente a dívida com a União.

Em outra coluna, iremos avaliar as consequências dessas concessões e analisar se valeu a pena a prefeitura ampliar seu superávit fiscal e alcançar tamanha disponibilidade financeira transformando esses espaços, tão representativos para a cidade, em lugares lucrativos para o setor privado.

Mas isso é, por enquanto, leite derramado. Agora a questão é a sociedade participar efetivamente da formulação de um plano de investimento para aplicar, de forma adequada, a disponibilidade financeira que se obteve sacrificando o patrimônio municipal.

É urgente a prefeitura instituir o orçamento participativo, com uma metodologia adequada para definir as prioridades de investimentos, incluindo não apenas os recursos do Tesouro como dos fundos com destinação específica, como o Fundurb (Fundo Municipal de Desenvolvimento Urbano), que tem cerca de R$ 1,5 bilhão em caixa.

Desenvolvido com grande sucesso em Porto Alegre e depois difundido em todo o mundo como uma prática bem-sucedida e necessária, o orçamento participativo é reconhecido pela ONU como um instrumento essencial para uma gestão democrática.

Como determina o Estatuto da Cidade, o Plano Diretor Estratégico (PDE) e a Lei do Plano de Metas, os investimentos a serem realizados precisam respeitar os objetivos, diretrizes e prioridades do PDE, de modo a articular o planejamento e a gestão da cidade.

Isso não tem sido obedecido. O PDE determinou que 30% dos recursos do Fundurb fosse utilizado na compra de terrenos bem localizados para a produção de habitação social. Desde 2017, o percentual aplicado em habitação não alcançou nem 15%, enquanto a carência de moradias disparou.

O risco de ter muitos recursos disponíveis é a prefeitura utilizá-los mal. Causa estranheza a notícia de que, sem debate, a prefeitura irá investir a soma inédita de R$ 1 bilhão para recapear as ruas. Embora necessária, dentro de certos limites, é um tipo de obra tradicional que não altera o modelo de mobilidade da cidade, que deve priorizar o transporte coletivo e os modais ativos.

Enquanto a prefeitura tem bilhões em caixa, vive-se uma degradação urbana e humana sem precedentes, não só na periferia como no centro. O comercio de rua passa por grave crise, as calçadas viraram dormitórios, o lixo se acumula e as pessoas têm medo de circular.

No pós-pandemia, é urgente um plano de ação, intersetorial e integrado, formulado de forma participativa, para recuperar a cidade. Os recursos estão aí, mas precisa melhorar a gestão.

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