Nabil Bonduki

Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, foi relator do Plano Diretor e Secretário de Cultura de São Paulo.

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Nabil Bonduki
Descrição de chapéu Mobilidade

Na pós-pandemia, viveremos a decadência da vida urbana ou uma reestruturação das cidades?

Com a retomada, está claro que a vida não voltará a ser o que era antes

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As pandemias, ao longo da história, sempre impulsionaram transformações importantes nas cidades, algumas positivas, outras negativas.

A peste negra (1346-1353), além de abalar o regime de servidão no campo, interrompeu o florescimento comercial, crescimento urbano e renascimento cultural nas cidades da Baixa Idade Média, que levaram décadas para se recuperar.

No século 19, as repetidas epidemias de cólera, febre amarela, varíola e tifo que grassaram nas cidades europeias foram decisivas para a regulação urbanística e para impulsionar políticas de habitação social.

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Prédios de escritórios localizados na marginal Pinheiros, em São Paulo (SP) - Eduardo Knapp - 12.mar.2021/Folhapress

Engels, que no clássico "A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra" (1844) mostrou a insalubridade e superlotação dos cortiços ocupados pelos trabalhadores nas cidades inglesas, reconheceu, quase 50 anos depois, que as epidemias foram decisivas para uma mudança nas políticas urbanas que melhorou a situação habitacional.

No prefácio da edição inglesa do seu livro, em 1891, afirmou: "As ocorrências repetidas de cólera, tifo, varíola e outras epidemias mostraram ao burguês britânico a necessidade urgente de saneamento de suas cidades e vilas. [...] Consequentemente, os mais gritantes abusos desapareceram ou se tornaram menos perceptíveis.".

Apesar da oposição dos liberais, que consideravam uma interferência indevida na atividade econômica, o Parlamento inglês aprovou, em 1848, a primeira lei sanitária, sob o forte impacto de uma epidemia de cólera, que matou dezenas de milhares de pessoas (1846-54). Medida semelhante foi adotada em seguida em outros países, inclusive no Brasil.

O enfrentamento das péssimas condições sanitárias e ambientais das cidades industriais europeias também impulsionou a formulação de novas teorias urbanísticas que originaram tanto as leis de zoneamento —para afastar os usos incômodos das áreas residenciais— como os programas de habitação social.

Passados dois anos da pandemia de Covid 19, cabe avaliar se ela poderá gerar transformações estruturais nas cidades ou se ela levará a uma decadência da vida urbana, como já é visível em São Paulo, com o aumento da população em situação de rua, ociosidade nos edifícios corporativos, decadência do comércio de rua e crise de financiamento do transporte coletivo.

Na coluna "As mudanças que a pandemia gerou nas cidades vieram para ficar" (12/4/2021), identifiquei as transformações que a crise sanitária provocou.

Em síntese: a habitação passou a ser o centro da vida de quem podia fazer home office, servindo como local de trabalho, estudo, lazer e sociabilidade, enquanto que os escritórios se esvaziaram.

O impacto sobre o mercado corporativo foi enorme. Em São Paulo, os escritórios devolvidos em 2021 e 2022 somaram 663 mil metros quadrados, de acordo com levantamento da consultoria Newmark. A vacância atingiu 25%, segundo a consultoria JLL.

O trabalho remoto mostrou que a concentração dos postos de trabalho em grandes edifícios situados em áreas hipervalorizadas, como a Faria Lima e a Vila Olímpia em São Paulo, não era necessária.

Por outro lado, com o isolamento social e o home office, o comércio eletrônico e o delivery de refeições cresceram, levando o comércio de rua e os restaurantes ao fechamento ou à crise. Em 2018 e 2021, o ecommerce cresceu mais de 100%, enquanto galpões de logística mudaram a paisagem de municípios como Cajamar, na Grande SP, que se tornou a "Faria Lima dos galpões".

Para a parcela da população que morava em condições precárias ou com conexão deficiente, a pandemia tornou a situação dramática. Na prática, quem não tinha uma boa internet ficou excluído do mercado de trabalho ou da educação.

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Vista do bairro de Sapopemba (zona leste), com monotrilho da linha15-prata ao fundo o fura-fila - Karime Xavier - 7.abr.2021/Folhapress

Evidenciou-se a gravidade do problema urbano, habitacional e de saneamento, enquanto a redução da renda informal provocou despejos de inquilinos e o aumento da população em situação de rua.

Com a retomada, está claro a vida não voltará a ser o que era antes. A questão é: em que direção irão se dar as mudanças?

Se quisermos evitar a decadência da vida urbana, será necessário repensar as cidades frente à nova realidade, através de um planejamento que seja inclusivo, que incentive o comércio de rua, o lazer coletivo e uso do espaço público e que preserve o trabalho em ambientes compartilhados.

Na retomada, muitos funcionários resistem a voltar ao trabalho presencial nos escritórios. Como mostrou a BBC News, "a Robert Half, uma empresa global de recrutamento, divulgou uma pesquisa que revelou que 50% dos trabalhadores americanos preferem se demitir do que serem forçados a voltar ao escritório em tempo integral, em grande parte devido ao tempo e custo de deslocamento".

Embora algumas empresas estejam voltando ao trabalho presencial, prevalece a preferência dos funcionários pelo trabalho online ou híbrido, o que também é vantajoso para as empresas, pois permite uma economia significativa com o aluguel em edifícios caros. Mas o trabalho inteiramente online empobrece a vida urbana, pois enclausura o trabalhador em casa e desestimula o convívio urbano.

O trabalho remoto mostrou que é possível descentralizar a localização dos trabalhadores. Para algumas atividades, pouco importa onde está o funcionário, desde que ele cumpra suas funções na empresa.

Esse processo é uma tendência perigosa para as cidades, mas, se for enfrentada adequadamente, pode também gerar benefícios, sobretudo por aproximar o trabalho da moradia, reduzindo a necessidade de deslocamento.

A queda da demanda por escritórios nas regiões mais valorizadas pode abaixar os valores dos terrenos e viabilizar o uso residencial, promovendo maior mistura de usos nesses territórios. O retrofit de edifícios de escritórios ociosos para uso residencial é uma alternativa.

Cabe ao poder público adotar medidas que estimulem e viabilizem o atendimento habitacional para a população de média baixa e baixa renda nessas regiões, que continuarão a ser privilegiadas.

Por outro lado, deve ser estimulada a implantação de edifícios de escritórios em áreas próximas ao local de moradia dos funcionários, como uma espécie de satélites, conectados pela internet, das sedes das empresas. Em Nova York, algumas empresas estão deixando ou reduzindo seus escritórios em Manhattan, para se estabelecer em local mais acessíveis aos funcionários.

Essa alternativa mantém o trabalho separado da moradia, o que é positivo, pois o home office gera uma exaustão física e conflitos domésticos que afetam a saúde mental. Mas evita grandes deslocamentos e tira as pessoas de dentro de casa, ampliando a sociabilidade, o uso do comércio de rua e a vida urbana.

Enfrentar a questão urbana e habitacional é essencial para se recuperar as cidades pós-pandemia. A crise sanitária escancarou a importância da moradia e da segurança hídrica para a saúde pública. Uma boa conexão de internet tornou-se um serviço essencial que precisa ser garantido para todos pelo poder público.

Enquanto a questão da população em situação de rua não for enfrentada seriamente, com programas adequados e investimento público, será difícil retomar a vida urbana.

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