Nabil Bonduki

Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, foi relator do Plano Diretor e Secretário de Cultura de São Paulo.

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Nabil Bonduki

Se projeto de Bolsonaro não for barrado, legião de sem-teto crescerá no Brasil

Muitos brasileiros endividados poderão perder seus imóveis e poderemos assistir a uma penhora generalizada de casas

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Por incrível que possa parecer, a maioria das famílias brasileiras, mesmo as mais pobres, tem uma moradia própria.

Esse talvez seja um dos poucos aspectos positivos do modelo urbano excludente que prevaleceu no Brasil na segunda metade de século 20, baseado em loteamentos periféricos, conjuntos habitacionais com financiamentos subsidiados, ocupações de terras e segregação socioterritorial.

Morador de rua em São Paulo
Morador de rua em São Paulo - Marlene Bergamo 24.mar.2020/Folhapress

Para a maioria, a casa própria foi obtida com muito sacrifício, por meio da autoconstrução, do mutirão ou do pagamento por muitos anos de uma prestação que pesava no bolso, sujeitando-se muitas vezes a morar em uma casa inacabada e com infraestrutura insuficiente. Como constatei em inúmeras pesquisas sobre o tema, esses proprietários de um único imóvel, onde moram, dizem que valeu a pena.

Segundo a Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) de 2019, realizada pelo IBGE, 72,5% das famílias brasileiras mora em casas próprias, sendo que destas 92% estão quitadas e 8% estão sendo pagas.

O dado foi confirmado por um levantamento realizado em 2021 e publicado neste ano pelo Datafolha, em parceria com a startup Quinto Andar, que mostrou que 70% dos brasileiros tem moradia própria (das quais, 89% quitadas) e que, mesmo entre a população mais pobre, a porcentagem de proprietários é elevada: 69% na classe C e 61% nas classes D e E. ​

Para esses moradores, conquistar a casa própria significou muito, muitíssimo. Ela é a garantia de que, mesmo em situações agudas de desemprego, redução salarial, doença ou aposentadoria pessimamente remunerada, conseguirão sobreviver com alguma dignidade. Não por acaso, 91% dos jovens de 21 a 24 anos afirmam desejar uma moradia própria.

É um "bem de família", que faz parte da estratégia de sobrevivência dos mais pobres e dos remediados, uma base indispensável para a criação dos filhos, para abrigar parentes que ficam desabrigados e, eventualmente, a base para a obtenção de uma renda adicional, com um pequeno negócio ou a locação de um cômodo.

Agora, essas famílias que, com tanto sacrifício, obtiveram a casa própria, estão ameaçadas de ficarem ao total desabrigo pelo Projeto de Lei 4.188/2021, proposto por Bolsonaro, que autoriza a utilização do "bem de família" como garantia de empréstimos e, se o morador não conseguir pagar a dívida, permite ao banco tomar o imóvel onde a pessoa mora, para quitá-la.

Na quarta-feira, ele foi aprovado pela Câmara dos Deputados e seguiu para o Senado, onde será debatido. Seus defensores alegam que a utilização do imóvel como garantia do empréstimo facilitará a concessão do crédito e reduzirá as taxas de juros, e que a decisão de contrair ou não o empréstimo será do tomador.

Ocorre que, aberta essa possibilidade, muitos brasileiros endividados e em desespero frente às altas taxas de juros e impossibilidade de pagar suas dívidas optarão por colocar sua única propriedade como garantia para novos empréstimos, que depois terão dificuldade para saldar.

O PL permite a utilização do mesmo imóvel como garantia para vários empréstimos, até o limite do seu valor, o que acabará por gerar, em um cenário de desemprego, redução da renda e inadimplência, um processo de superendividamento.

Segundo levantamento da Confederação Nacional dos Dirigentes Lojistas e do SPC (Serviço de Proteção ao Crédito), 4 em cada 10 brasileiros adultos estavam inadimplentes em abril de 2022, o que significa mais de 60 milhões de pessoas com pendências nos birôs de crédito. A tendência é de aumento e de crescentes dificuldades para as pessoas quitarem suas dívidas.

Nessas condições, se esse projeto de lei não for barrado, poderemos assistir nos próximos anos a uma penhora generalizada de casas próprias, agravando o já gravíssimo problema da moradia. Poderemos assistir cenas que são comuns nos Estados Unidos, onde famílias até mesmo de classe média são despejadas e obrigadas a morar em carros, em trailers ou nas ruas.

Por que o imóvel onde vive a família, se for a única propriedade, não pode ser penhorado?

O instituto jurídico do "bem de família" tem o objetivo de proteger a habitação da família, que é considerada pela nossa Constituição como a base da sociedade. Ele pode ser considerado um direito, que impede a penhora do imóvel onde a família vive. Na legislação brasileira, suas origens são antigas, o que pode levar a um questionamento sobre a constitucionalidade da lei proposta.

"Bem de família" nasceu no Código Civil de 1916. No Estado Novo, que buscava difundir a casa própria e proteger a pequena propriedade, um Decreto-Lei de 1941 limitou os valores máximos dos imóveis protegidos, restrição que foi eliminada em 1979, que impediu a penhora de imóveis de qualquer valor.

Em 1990, a Lei 8.009 criou o chamado "bem de família obrigatório", imposto pelo próprio Estado como norma de ordem pública, ou seja, que independe da vontade do proprietário, visando resguardar o imóvel que abriga a família. Todas essas normas partem da ideia de proteger o domicílio da família, garantindo-lhe um teto e evitando sua desestruturação.

Para a população de baixa renda e mesmo para a classe média empobrecida, a moradia própria faz parte de uma estratégia de sobrevivência em uma sociedade onde garantias sociais são escassas e insuficientes. A casa é a última trincheira onde a família se protege contra as inúmeras ameaças econômicas e sociais que sofre cotidianamente.

Essa realidade ficou escancarada durante a pandemia, quando muitos perderam a renda. Quem tinha uma moradia própria conseguiu se virar, embora precariamente, com o auxílio emergencial de R$ 600. Já os inquilinos (27% dos brasileiros) passaram enormes dificuldades, pois o auxílio não era suficiente para pagar o aluguel e a alimentação.

Em consequência, muitos foram despejados e a alternativa foi coabitar na moradia de parentes, se abrigar em alguma ocupação ou ir para a rua, destino que fez a cidade se transformar em um alojamento de sem teto, como se vê em São Paulo.

Ao invés de enfrentar a grave crise habitacional com prioridade e investimentos voltados para a população de baixa renda, o governo Bolsonaro, que paralisou a Faixa 1 do Minha Casa Minha Vida (atual Casa Verde Amarela), coloca mais lenha na fogueira, estimulando as pessoas já endividadas a tomarem mais crédito do que podem pagar, com o risco de perderem a moradia que obtiveram com tanto sacrifício.

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