Nabil Bonduki

Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, foi relator do Plano Diretor e Secretário de Cultura de São Paulo.

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Nabil Bonduki

Até quando a prefeitura tolerará as ilegalidades na r. 25 de Março que provocaram o incêndio?

Para a 25 manter sua liderança, é preciso promover uma grande transformação da sua estrutura física

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Por muita sorte, o imenso incêndio que atingiu edifícios, lojas e a paróquia Ortodoxa na região da rua 25 de Março, que levou mais de 60 horas para ser debelado, ocorreu em um domingo à noite. Tivesse se iniciado em um dia de semana, em horário comercial, estaríamos agora lamentando não prejuízos materiais, mas mais uma tragédia com muitas vidas perdidas.

Um incêndio dessas proporções era uma tragédia anunciada, consequência do desleixo, de um lado, de proprietários e comerciantes, e de outro, da prefeitura e dos bombeiros, vinculados ao governo do estado, a quem cabe fiscalizar a segurança dos edifícios.

A 25 está repleta de lojas, depósitos de mercadorias e edifícios ocupados em desacordo com sua função original que não cumprem a legislação de prevenção a incêndios. Isso para não falar da pirataria, da carga roubada e contrabandeada, do "barani" (sonegação de impostos), da lavagem de dinheiro, entre outras ilegalidades, amplamente conhecidas por todos.

Pedestres observam a fumaça do incêndio no prédio na região da rua 25 de Março
Pedestres observam a fumaça do incêndio no prédio na região da rua 25 de Março - Karime Xavier - 12.jul.22/Folhapress

O Edifício Comércio e Indústria, que pegou fogo, não tinha auto de vistoria do Corpo de Bombeiros (AVCB). Em tese, ele deveria estar interditado pela prefeitura e pelos bombeiros. Construído em 1948, estava repleto de mercadorias de fácil combustão, assim como as outras lojas que pegaram fogos, como a Matsumoto e a Santa Cecília.

Mas essa situação não é um caso isolado, é quase a regra na região.

Como dezenas de outros prédios altos, o Comércio e Indústria estava ocupado com um uso diferente da concepção original. Os projetos dos edifícios comerciais do centro previam lojas no térreo e salas ou escritórios nos pavimentos superiores.

Enquanto em outras áreas do centro histórico, que se esvaziaram comercialmente, os edifícios dessa época foram abandonados (vários estão ocupados por movimentos de sem-teto), na região da 25 o comércio permaneceu pujante e os pavimentos superiores foram transformados em lojas e/ou estoques de mercadorias altamente inflamáveis.

A 25 é maior polo de comércio popular de rua do Brasil. Circulam ali, diariamente, de 200 mil a 300 mil pessoas. Em período de maior movimento, como no final de ano, pode chegar a 1 milhão. Em 2019, a região movimentou cerca de R$ 14 bilhões, ou seja, uma média diária de R$ 50 milhões. Mas é uma potência comercial com pés de barro.

São cerca de 5.000 estabelecimentos comerciais, desde as grandes lojas de rua, mais bem estruturadas, passando pelos quiosques em galerias que penetram o interior dos edifícios até as lojas que ficam nos antigos escritórios nos pavimentos superiores.

Como o movimento é intenso e presencial, muitos com venda por atacado, os estoques são enormes e precisam estar próximos do local de venda. Mesmo no caso das vendas online, que cresceram durante a pandemia, o processamento das mercadorias para remessa também ocorre, na maioria dos casos, no próprio local.

Dado o alto valor do metro quadrado, a alternativa encontrada foi estocar improvisadamente nos pavimentos superiores. Mas são prédios antigos, em geral, com instalações elétricas obsoletas, sem hidrantes, rotas de fuga ou saídas de emergência e outros cuidados que a atual legislação exige para preservar vidas.

Como se vê, trata-se de um problema estrutural, cujo enfrentamento requer planejamento urbano, investimento privado, rigor do poder público na fiscalização e uma grande disposição de proprietários e comerciantes para colocar as vidas humanas e a própria sobrevivência, a longo prazo, do comércio dessa região na frente da rentabilidade imediata.

Esse incêndio foi um alerta. Se a 25 não se renovar e não fizer as transformações urbanísticas e edilícias necessárias para o funcionamento de um polo comercial dessa dimensão, ela perderá seu enorme potencial comercial e poderá entrar em declínio.

Até agora, a improvisação das estruturas físicas, com os riscos inerentes, garantiu o enorme sucesso comercial. Mas ele tem limites e isso está ficando visível. Se a prefeitura deixar de fazer corpo mole e for rigorosa na fiscalização das condições de segurança, parte significativa dos pontos comerciais e depósitos terão que ser interditados.

A região do Pari tem atraído parte do movimento da 25 ao construir espaços comerciais modernos e apropriados, prevendo-se até estacionamento de ônibus no subsolo, para facilitar a vida dos turistas de compras, oriundos do interior do estado. É uma questão de tempo aparecerem outros locais alternativos de comércio popular.

Se a 25 quiser manter sua liderança, ela precisa promover uma grande transformação da sua estrutura física. Dado o grande número e pulverização de atores, isso dificilmente ocorrerá sem a liderança da prefeitura.

Como é usual após essas tragédias, a prefeitura se mobilizou para mostrar serviço. Em poucos dias, decidiu demolir o edifício, contratou uma empresa por emergência e conseguiu aval dos proprietários para essa ação. Espera-se que, de fato, a demolição não onere os cofres públicos, como o anunciado. Do contrário, seria um escândalo.

Tomar essas providências depois do leite derramado é fácil. A questão crucial é como garantir imediatamente segurança para trabalhadores e consumidores, sem paralisar o comércio local e gerar desemprego. Tarefa complexa, mas indispensável.

No médio prazo, a prefeitura, em parceria com os atores locais, precisa articular e formular um plano, sem envolver recursos públicos, capaz de modernizar a região, tornando-a adequada ao enorme movimento de pessoas e mercadorias que por lá circulam.

É necessário implantar centros de logística adequados às características do comércio local e do crescente comércio online; reabilitar os edifícios para os usos que sejam compatíveis com sua estrutura física; dotar a região de uma nova estrutura de mobilidade e garantir condições de segurança.

Não será tarefa simples. Como me disse uma comerciante da região, "daqui a pouco, as ruas e lojas serão liberadas, todos vão esquecer e a vida vai voltar ao normal".

Até o próximo incêndio, que se ocorrer em horário de expediente será pior do que esse.

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