Nabil Bonduki

Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, foi relator do Plano Diretor e Secretário de Cultura de São Paulo.

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Nabil Bonduki
Descrição de chapéu Mobilidade

A farra com áreas públicas, que é antiga, continua a toda na Prefeitura de São Paulo

Não tem sentido subsidiar pessoas com perfil social elevado enquanto inúmeros bairros periféricos não têm áreas de lazer, recreação e esportes

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Em 2001, a Câmara Municipal, provocada por uma reportagem da Folha, instaurou uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar as cessões de áreas públicas. Recém-eleito vereador, participar dessa investigação foi minha primeira atividade no Legislativo paulistano.

A CPI identificou mais de 200 terrenos invadidos ou cedidos pelo município a clubes, bancos, shoppings, postos de gasolina, estacionamentos e motel, que somavam quase um milhão de metros quadrados. Os maiores estavam na mão de clubes: São Paulo, Palmeiras, Corinthians, Círculo Militar, Ypê, Alto de Pinheiros, Clube dos Magistrados (Apamagis), Esperia, Tietê, entre outros. Foram constatadas irregularidades na maioria dos casos.

Clube Circulo Militar, que fica próximo ao Ginásio do Ibirapuera; disputa por área que é pública está na Justiça - Eduardo Knapp - 2.ago.22/Folhapress

Além de não pagarem IPTU (o que ainda está na lei), os clubes tinham contrapartidas ínfimas frente ao valor das áreas, situadas em regiões nobres, como Ibirapuera, Lapa, Alto de Pinheiros, Bom Retiro, Santana, Moema e Penha. Ademais, obtinham uma renda adicional, alugando salões e quadras.

Pelo uso dos terrenos, muitos com mais de 30 mil m², os clubes se comprometiam a ceder uma quadra esportiva por um dia por semana para uma escola das redondezas ou a receber estudantes carentes uma vez por mês. A CPI verificou que nem isso ocorria. Era tudo para inglês ver.

O relatório final da CPI, aprovado pela Câmara Municipal, determinou que a prefeitura deveria exigir dos clubes "uma contraprestação mensal pecuniária, compatível com a localização, tamanho e destinação da área, para que se estabeleça equilíbrio econômico financeiro do contrato e não se viole os caros princípios da Administração Pública: da moralidade e do interesse público".

Após elencar um conjunto de propostas sobre a gestão de áreas públicas, o Legislativo determinou que "na eventualidade do clube não aceitar a negociação, deve-se revogar a concessão" e deu "um prazo de 180 dias para o Executivo tomar as providências necessárias para sanar as irregularidades e rever as contrapartidas conforme conclusões da CPI".

Passados 21 anos e a gestão de sete prefeitos, de vários partidos, o único caso em que essa determinação foi cumprida foi a retomada do falido Clube Regatas do Tietê, que, reformado na gestão Haddad, foi transformado em um espaço público de esportes e lazer, com acesso gratuito para a população.

A prefeitura, além de nada fazer para regularizar a situação, continua firmando termos de cessão ou concessão sem as adequadas contrapartidas.

Frente a essa omissão, a decisão do juiz Kenichi Koyama, requerendo a devolução da área de 31 mil metros quadrados ocupada pelo Círculo Militar, deve ser saudada como um marco na luta para que os bens públicos possam ser usufruídos por todos. Ela decorre de uma ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público, que tem se empenhado em enfrentar o problema.

O juiz reafirma as conclusões da CPI de 2001. Considerou que as contrapartidas, como atividades para crianças de entidades sociais e de uma escola municipal, são "insuficientes e genéricas, despidas de quantitativo e qualitativo qualquer, cuja fragilidade não autoriza presumir que o interesse público tenha sido respeitado".

Ele determinou a "retomada do bem e sua utilização em interesse público e social, em favor de toda a população paulistana. (...) Qualquer forma de cessão de bem público que esteja sendo indiretamente aquinhoado por um grupo especial de particulares desafia a concepção central de res pública".

O Círculo Militar está implantado no Ibirapuera, uma das regiões mais caras de São Paulo, e a área está avaliada em R$ 750 milhões. Estima-se que o prejuízo aos cofres públicos seria de R$ 12 milhões por ano, considerando aluguel e IPTU.

Ele é frequentado por 15,5 mil sócios de alta renda, que compraram um título de adesão por valores de R$ 10 mil a R$ 30 mil e pagam uma mensalidade de R$ 250. Parece pouco, porque existe uma lista de espera para novos sócios.

A batalha judicial terá continuidade, pois o clube anunciou que irá recorrer em 2ª instância, tendo contratado dois renomados escritórios de advocacia para defendê-lo.

Não tem sentido a prefeitura subsidiar pessoas com esse perfil social enquanto inúmeros bairros periféricos não contam com áreas de lazer, recreação e esportes. O caso é mais um exemplo de como o poder público reforça a desigualdade social e urbana, tão forte em São Paulo.

Esse caso é uma oportunidade para a prefeitura mudar sua postura de conivência com a apropriação privada das áreas públicas. Ela deveria se empenhar para que essa decisão judicial fosse cumprida. Mas, até o momento, parece que está jogando do lado do clube.

Decisões recentes da prefeitura no sentido de contrariar entidades influentes não são animadoras, como se constata na cessão de terrenos municipais situados na Operação Urbana Água Branca (Lapa), que também está sendo investigada pelo Ministério Público.

A concessão de uma área de 44 mil metros quadrados para o Centro de Treinamento do São Paulo, avaliada em R$ 360 milhões, foi uma das investigadas pela CPI de 2001, quando já se verificou a insuficiência e não cumprimento das contrapartidas. Nada foi feito na época. A concessão, firmada em 1983 pelo prazo de 40 anos, venceria em 2023.

O plano urbanístico da Operação Urbana (Lei 15.893/2013) previu que "as áreas verdes cedidas ao São Paulo e ao Palmeiras deverão, quando devolvidas à posse do Município, ser incorporadas a um parque urbano". A proposta é necessária em uma região da várzea do Tietê, que passa por intenso processo de verticalização.

Mas, contrariando a Lei, o planejamento urbano e o interesse público, a prefeitura se comprometeu a renovar a concessão da área para o São Paulo por mais 40 anos, desde que o clube construísse duas creches, com um dispêndio máximo de R$ 5 milhões, insignificante frente ao valor da área. Em janeiro passado, o prefeito Ricardo Nunes celebrou o acordo junto com o presidente do São Paulo.

Espera-se que a decisão judicial do Círculo Militar e as novas ações civis públicas promovidas pelo Ministério Público possam alterar a postura da prefeitura na gestão das áreas públicas.

Várias alternativas são possíveis: a venda desses terrenos e a utilização dos recursos obtidos para adquirir áreas verdes em regiões carentes de parques; a retomada das áreas para implantar parques ou centros esportivos, como foi feito no Clube Tietê ou a cobrança de aluguéis, ao valor de mercado, para a concessão.

O que não é admissível é a continuidade do uso privado de bens púbicos sem contrapartidas compatíveis com o valor dos terrenos.

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