Nabil Bonduki

Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, foi relator do Plano Diretor e Secretário de Cultura de São Paulo.

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Descrição de chapéu Mobilidade

Sem licitação, Prefeitura de SP entrega os semáforos, por R$ 1,8 bi, a consórcio suspeito

Contratar empresas sem licitação alegando emergência virou praxe na gestão Ricardo Nunes; valor cresceu 40 vezes em quatro anos

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Enquanto as atenções estão voltadas para as eleições, para as ameaças golpistas de Bolsonaro e para a mobilização em defesa da democracia, barbaridades ocorrem em série, sem grande repercussão, na prefeitura de São Paulo, comprometendo o futuro da cidade.

Entre elas, a mais recente é a entrega, por 20 anos, sem licitação, por R$ 1,8 bilhões, da modernização e manutenção do sistema semafórico à concessionária da PPP da Iluminação Pública, formada por empresas que tem vasto curriculum, não de uma boa gestão de semáforos, mas de denúncias de corrupção.

Dados obtidos com exclusividade por meio de lei de acesso a informacao mostram que 75% das panes em semaforos na cidade de Sao Paulo sao provocadas por falhas. Semaforo do cruzamento da rua Claudio Rossi com a rua Pero Correia, na Vila Mariana, zona sul. Foto tirada em maio de 2022
Dados obtidos com exclusividade por meio de lei de acesso a informacao mostram que 75% das panes em semaforos na cidade de Sao Paulo sao provocadas por falhas. Semaforo do cruzamento da rua Claudio Rossi com a rua Pero Correia, na Vila Mariana, zona sul. Foto tirada em maio de 2022 - Rivaldo Gomes/Folhapress

Esse escândalo, veementemente questionado pela auditoria do Tribunal de Contas do Município (TCM), foi aprovado nessa semana pelo seu plenário (com dois votos contrários em cinco). Apesar de sua complexidade, ela não pode passar desapercebido, pois envolve elevado valor contratual e enorme repercussão no cotidiano da cidade.

Contratar empresas sem licitação, alegando emergência, virou praxe na gestão Ricardo Nunes. Assim se evita a concorrência pública, abrindo mão de obter o melhor resultado pelo menor preço.

O valor de obras por emergência cresceu estratosfericamente em SP: em quatro anos se multiplicou por 40 vezes! Em 2017, o valor de obras contratadas sem concorrência foi de R$ 8,2 milhões. Em 2021, alcançou R$ 338,8 milhões. Em 2022, estima-se que irá ultrapassar R$ 1 bilhão.

Para Juliana Sakai, diretora do Transparência Brasil, ONG de combate à corrupção, "a dispensa de licitação faz com que os governos gastem muito mais do que o necessário. O poder público tem que diferenciar o que é emergência e o que são obras necessárias que podem ser planejadas e feitas seguindo as regras de concorrência".

Mais grave é a entrega do sistema semafórico, sem licitação, ao consórcio Ilumina SP, em um aditamento mais que suspeito.

É indiscutível que o sistema semafórico está mal gerido, que nos últimos tempos se tornou ainda mais caótico e que a atual forma de gestão, coordenada pela CET e operada por três empresas privadas, precisa ser alterado. A CET tentou promover uma licitação para contratar novas empresas, mas o processo foi interrompido pela própria prefeitura.

Em 2018, a gestão municipal lançou um Procedimento Preliminar de Manifestação de Interesse (PPMI), visando estruturar uma PPP específica para a modernização da rede semafórica. Oito empresas demonstraram interesse e apresentaram subsídios, algumas com grande tradição tecnológica, como a Siemens e a Cisco.

Essa alternativa seria a melhor alternativa para enfrentar o histórico problema dos semáforos, com uma concorrência internacional onde empresas experientes em smart city apresentariam propostas com inovações, avanços tecnológicos, custos mais baixos e resultados palpáveis.

Mas a prefeitura, sem justificativa plausível dentro da sua própria lógica privatista, optou por outro caminho. Alijar todos os possíveis concorrentes, que poderiam apresentar propostas mais vantajosas e aditar, sem licitação, a PPP de Iluminação Pública, beneficiando o consórcio formado pelas empresas FM Rodrigues e CLD (antiga Consladel).

Esse consórcio está longe da excelência. A telegestão do sistema de iluminação pública, principal avanço tecnológico esperado pela PPP está atrasado e sem previsão de implantação. Ademais, as empresas que o integram têm um histórico de denúncias de corrupção.

Em 2018, a CBN divulgou um áudio mostrando que a FM Rodrigues pagava propina para a diretora do Ilume (órgão que gerenciava os serviços) para obter favorecimento nos contratos em andamento e na licitação da PPP de Iluminação.

O CLD tem sido denunciada por pagamento de propinas em inúmeros estados e cidades brasileiras, como Amazonas, Distrito Federal, Manaus (AM), Pouso Alegre (MG) e, até mesmo, em São Paulo, onde ainda é uma das empresas (ir)responsáveis pela manutenção dos semáforos.

O tortuoso caminho para o aditamento envolveu a aprovação da lei 17.731-2022, sancionada por Nunes em janeiro, que, no artigo 19º, abriu a brecha para a prefeitura aditar contratos de parceria existentes para agregar serviços associados, desde que existisse "sinergia de serviços, a economicidade e a economia de escala".

Alguns dias após a sanção da lei, a prefeitura propôs aditar a PPP da Iluminação para incluir a modernização e manutenção do sistema semafórico. Alegou haver sinergia de serviços, economicidade e economia de escala.

O TCM questionou o aditivo, alertou a prefeitura para não assiná-lo e iniciou uma análise técnica aprofundada sobre a natureza dos serviços, visando verificar se efetivamente existia sinergia, economia de escala e economicidade.

Enquanto essa análise estava sendo realizada, entre fevereiro e julho, o caos semafórico se aprofundou. Questionada, a prefeitura culpou o TCM, que estava atrasando o aditivo "salvador", não esclarecendo que havia contratos de manutenção em vigor, um dos quais com a própria CLD, que integra o consórcio que seria favorecido pelo aditamento.

O extenso relatório da auditoria do TCM, assinada por três auditores, com 58 páginas e vasta análise e argumentação, é taxativo pela ilegalidade do aditivo, concluindo que:

  1. "A proposta de integração dos semáforos na concessão da iluminação não atende ao requisito constitucional e legal da licitação prévia para as concessões públicas" e "é inviável juridicamente pela transfiguração de objeto contratual".
  2. "A vantajosidade da incorporação da rede semafórica na PPP da Iluminação não resta comprovada, não sendo um argumento hábil a justificar o aditamento".
  3. "As justificativas econômico-financeiras apresentadas não são suficientes para dispensar a licitação da modernização e da manutenção do sistema semafórico".
  4. "Os argumentos acerca da sinergia entre os sistemas de iluminação pública e dos semáforos são frágeis para justificar a incorporação desta última ao contrato existente, pois se trata da contratação de sistemas absolutamente distintos".
  5. "É questionável a vantajosidade do pretendido aditivo, considerando que em uma PPP autônoma haveria disputa de mercado, [...] não licitar alija potenciais interessados de apresentarem estudos e contribuições para o projeto".
  6. "A equipe técnica que realizou a análise [...] identificou que os orçamentos estimativos apresentam sobrepreço, com distorções significativas, ou seja, não possuem condições de servirem como base para a simulação de cenários de avaliação econômico-financeira para o presente termo aditivo".

Apesar dessas conclusões categóricas, o aditivo foi aprovado pelo plenário do TCM, pressionado pela acusação de ele estava atrapalhando o enfrentamento do caos semafórico. Agora, tudo indica que, até setembro, a prefeitura firmará o aditivo e, milagrosamente, o caos semafórico agudo cessará.

Mas a necessária modernização e avanço tecnológico do sistema semafórico estará, por dezenas de anos, comprometido, sob gestão de um consórcio formado por empresas suspeitas, uma das quais é atualmente responsável pela péssima manutenção dos semáforos da cidade.

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