Nina Horta

Escritora e colunista de gastronomia, formada em educação pela USP.

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Nina Horta
Descrição de chapéu alimentação

Que nova farmácia é essa?

A maioria de nós não entende mais nada sobre alimentos funcionais

Nina Horta

Não há como negar. Cronistas de comida se tornam rabugentos com o tempo. Como não? As novidades, as frutas desconhecidas, o peixe vermelho, a praia solitária, os livros... Ah, os livros. Tudo se parece e se repete.

Brócolis, grãos e frutas vermelhas
Brócolis, grãos e frutas vermelhas - Adriano Vizoni/Folhapress

De repente nos vemos com a boneca da cozinha nas mãos, eviscerada, sem surpresas, e o que nos resta?

Elizabeth David chegou a ser uma das melhores escritoras inglesas e acabou enveredando para tratados de pães e sorvetes bem sem graça de se seguir. Jeffrey Steingarten anda lidando com fórmulas. Bourdain se transformou num provador universal, pulando de helicóptero de um sanduíche gigante a um pastel.

Para começar há que esquecer estilo e começar a lidar com palavras que geralmente abominamos, como sustentabilidade, orgânico, vegano, funcional e por aí vai. Não há crônica que as aguente.

Nem percebi que esse ataque, essa mudança na atitude para com a comida, começou nos anos 1960. Assinávamos duas lindas revistas americanas, a Ladie's Home Journal e a Good Housekeeping. Pois religiosamente apareciam nelas dois regimes de emagrecimento. Isso durante anos.

Aos poucos, ingredientes que eram somente bonitos ou gostosos foram se complicando em conceitos e, para mim, o passo mais triste foi o nutricionismo. Claro que sempre soubemos que somos o que comemos, mas não dávamos importância demasiada. Só comíamos, sem comentários.

Insidiosamente, no entanto, se infiltrava em nós a comida funcional, aquela que fornece nutrientes ou outras substâncias que nos fazem crescer, que nos mantêm vivos e bonitos.

Bom, todas as comidas são funcionais, mas algumas o são mais do que as outras. Aquelas que não precisam ser modificadas chamam-se convencionais, como as frutas no pé, colhidas e descascadas na hora. Como a maçã de Eva. Fruta das mais convencionais, fresca, sem aditivos para nos deixar felizes.

Hoje ela teria o aval científico de ser um ingrediente sem necessidade de plus para ajudar a curar uma doença, como seriam as nozes, os tomates, os limões do paraíso. O paraíso na nossa cabeça era um bosque, não uma farmácia. E, mesmo sendo convencional, que forrobodó causou essa maçã.

Mas, humanos demais, começamos a querer modificar o que já era bom, colocar aditivos no leite, ginseng e guaraná nas bebidas, para que não haja dúvidas de que são funcionais, e não convencionais. O poder das palavras.

Nada de dietas padrões, com ingredientes consumidos regularmente e em quantidades normais. Queremos mais, queremos que nos impeçam de adoecer de certo mal, que não somente cumpram a função de nutrir, mas nos tornem longevos e lindos.

Claro que as indústrias não iriam nos perdoar de tais anseios, e juntaram Ômega 3 ao leite, cálcio ao suco de laranja, diminuíram a gordura do biscoito e salgaram as bebidas zero.  

Estabeleceu-se a confusão. A maioria de nós não entende mais nada dessa floresta de alimentos funcionais, quais se combinam, quais se excluem, que nova farmácia é essa? A comida como remédio não é novidade, nós a utilizávamos há anos, mas nua e crua. A novidade foi o processamento delas. Queremos a lasanha saudável, mas gostosa, obrigada, e sem espinafre, se possível.

Não queremos reverter ao tempo das raízes em infusões, mas seria tão bom que se entrasse na farmácia por uma porta e na quitanda por outra. E que a palavra “gostosa” tomasse de novo seu lugar proeminente.

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