Nina Horta

Escritora e colunista de gastronomia, formada em educação pela USP.

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Nina Horta
Descrição de chapéu

Gostos formam turmas, e queremos comer o que queremos ser

O que continua firme é a ideia de que gosto não se discute

É muito difícil entender essa coisa de gosto. Uma vida inteira tratando do assunto e sem resposta se me perguntarem o motivo de alguém gostar de abobrinha ou couve-de-bruxelas.

Por causa da infância? Da moldura? Do lugar, do tempo, daquele cheiro de maçã e leite em pó da casa de uma avó e de doce de cidra, queijo fresco e madeira do armário na casa da outra. As comidas novas, as diferentes, a vida brotando, um carinho difuso te envolvendo, uma inocência pré-internet.

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O chef Ferran Adrià - Eduardo Knapp/Folhapress

E o tempo passa e a empadinha passa, passa o tender com abacaxi, o camarão na abóbora, o estrogonofe passa, o sushi não passa, o sorvete frito passa rápido, o carpaccio, o tomate seco, as flores, os brotos, as espumas, o único tomate, a horta no mezanino, a paisagem no prato, as cinzas, o queimado, Bocuse, o Ferran Adrià, quem diria. 

Grandes mesas de banquete, javalis, Carême (1784-1833), Escoffier (1846-1935), serviço à russa, à inglesa, à francesa, com toalha ou sem toalha, o prato enorme octavado, a tigela, o coco, a concha do abalone, a cerâmica torta. Passam. Rendas, crivos, ponto cruz, ráfia, plástico, jogo americano Vera Wang? Todos passam.

Dietas? Low fat, low carb, Dr. Atkins, raw food, dos pontos,mediterrânea, paleo, ortomolecular, sem gluten, do abacaxi, da sopa, do jejum intermitente. As dietas passam, os quilos é que voltam.

Não esquecer das turmas firmemente agarradas às certezas absolutas do que é bom, do que não é. Rústicos, vegetarianos, onívoros, sazonais, locais, coletores, nacionais,  alérgicos, industrializados, naturebas. 

Gostos formam turmas, ou as turmas formam gostos, galeras, tribos, confrarias. Queremos comer o que queremos ser, é todo um pacote de desejos, possibilidades, momentos, histórias, de tudo um pouco como nas boas dietas. 

Podemos mudar nel mezzo del cammin di nostra vita, sem problemas, mudamos nós ou mudou nosso gosto?

Escolhemos restaurantes a dedo, dentro de casa é a comida de todo dia, ou a congelada, o delivery, na rua queremos marcar o nosso espaço, mostrar a que viemos, e o que queremos. O chef concorda, ele sabe das coisas. E os críticos e cronistas passam, ah, como passam, cruzes! 

O Brasil cortado inteiro por uma passarela de arroz, feijão, carne, peixe ou frango, ovo, uma fritura e uma saladinha, talvez um legume e algo típico do terreiro. E a farofa, não esquecer a farofa. Pobres e ricos e os mesmos ingredientes apresentados de forma e quantidades diferentes. Com certeza não passa. Será? 
O que continua firme é a ideia de que gosto não se discute.

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