Nina Horta

Escritora e colunista de gastronomia, formada em educação pela USP.

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Nina Horta

Seria possível descrever a cidade através da comida?

A inglesa Carolyn Steel refletiu sobre o árduo caminho do alimento até centros urbanos

Preste atenção. Pense numa cidade. Qualquer uma. As árvores em frente à sua casa, a praça, as lojinhas, o posto de gasolina, os prédios enfileirados. Os táxis no ponto. E gente, muita gente. O que fazem essas pessoas? Comem. É uma civilização humana que come. E muito.

Lavoura de milho no norte do Paraná
Lavoura de milho no norte do Paraná - Mauro Zafalon/Follhapress

Já imaginaram numa cidade do tamanho de São Paulo e todos comendo de manhã, à tarde e à noite? Quanta coisa a ser transportada, vendida, cozida e comida? Todo dia da semana, do mês, do ano? No mundo inteiro?

E nós, mastigando sem pensar no trabalhão? Essa greve de caminhoneiros nos fez refletir um pouco. Mercados, supermercados, feiras, restaurantes, cozinhas. E, antes do mercado, as plantações, as chácaras, as fazendas, as fábricas, os matadouros.

Bem, todas essas questões estavam na cabeça de Carolyn Steel, uma inglesa que passava as férias no hotel dos avós e tinha a maior intimidade com a cozinha.

Carolyn Steel, cresceu, foi para a faculdade e formou-se em arquitetura. Mas achava a matéria dura e fria, impessoal, cimento e vidro. Eram casas de gente. E para entendê-las era preciso achar um fio condutor. Seria possível descrever a cidade através da comida?

Demorou quase dez anos escrevendo um livro que mudou sua perspectiva de vida, seu modo de ver o mundo. Começou assistindo programas de TV. Era Natal e o programa mostrava a bela mesa com um salmão defumado, peru, acompanhamentos, bolo de Natal com frutas secas, queijo Stilton. Pensou no caminho árduo para a comida chegar até a mesa, as esteiras rolantes, a matança dos bichos, os caminhões de transporte, poucos porcos, perus e vacas felizes, mas todos mal alojados e apertados. Fazer o quê? A quantidade que comemos não nos permite mais ter bichos soltos, pastando ou ciscando milho por aí. Em 2006 comia-se 850 milhões de galinhas por ano só na Inglaterra.

Por aí já se vê que não haveria cidade se não fosse o campo. A maioria das cidades, com o tempo, ultrapassou seus cinturões verdes e as fazendas que nos davam a comida. A nossa ideia romântica de campo com pastos e sebes floridas, canteiros de couve, simplesmente não existe mais.

A verdadeira paisagem são extensos campos de soja e de milho, galpões imensos, industriais. As populações tornaram-se predominantemente urbanas e se somos vegetarianos por escolha, somos onívoros por natureza e carne é o que queremos comer. E pensem só quando a China se urbanizar inteiramente.

Temos que pensar numa nova comida, mas fica para a quarta que vem, e o livro da Carolyn Steel chama-se "Hungry City" (Cidade Faminta, em tradução livre). 

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