Nina Horta

Escritora e colunista de gastronomia, formada em educação pela USP.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Nina Horta

Comeremos a paisagem

Nas novas cidades, compraremos menos carne e, se quisermos mais, pagaremos mais

O caminho para a quase utopia da cidade construída em torno da comida é muito parecido com essa febre de hortas comunitárias que vemos agora, mas que ainda são poucas. A primeira coisa seriam os laços que deveríamos manter com quem planta nosso alimento. Teríamos muitas feiras, lojas e dentro de nós começaria a crescer uma identidade de comida que queremos comer e que podemos comprar.

Nossas casas estariam preparadas para receber essa comida de nossos vizinhos fazendeiros. Teríamos cozinhas amplas, mesas grandes para nos sentarmos todos, almoçarmos e jantarmos com a família. As escolas teriam fogões nas classes e uma das principais matérias seria como plantar, cozinhar e ter prazer em comer.

Antigamente, as cidades giravam em torno do que comiam. Lembro da pequena Florestal com uma escola agrícola, o matadouro, os quintais com árvores frutíferas, o pequenino moinho de fubá. Voltaríamos, então, às microcidades dos anos 1940 espalhadas pelo interior?

Horta no bairro do Itaim Paulista, zona leste de São Paulo
Horta no bairro do Itaim Paulista, zona leste de São Paulo - Zanone Fraissat/Folhapress

A comida manteria as pessoas juntas, celebraria a vida. Haveria uma proteção do governo contra os monopólios de comida e a cidade seria soberana em relação ao que quisesse plantar e comer. Teríamos acesso à produção industrial, sem exageros, com ética e com muita transparência.

Estamos dentro da utopia, mas não há necessidade de sermos utópicos. Poderemos nos desviar um pouco e enfrentar a realidade com consciência e inteligência. Se não estamos conseguindo isso com a megacidade, podemos nos preparar para a pequena escala do futuro.

Vai depender de nós. Das nossas escolhas. Comeremos a paisagem. Comeremos menos carne e menos peixe. E se quisermos comer mais, pagaremos mais caro. Comprar na feira e conversar com feirantes e gente do mercado. O governo vai ter que ajudar e nós teremos vozes políticas. Vamos aprender a ler o que vem escrito nos nossos pacotes e garrafas.

Cozinhar e comer é preciso, é um ato social que aproxima as pessoas. É preciso ter prazer na comida.

Para mim tudo isso parece impossível em grande escala. Nem acredito que alguém tenha escrito um livro importantíssimo para chegar a essas conclusões. Mas não tenho uma ideia própria de como construir uma cidade em função da comida. Não consigo imaginar nem de longe como poderia ser e qual seria minha vontade política. Acho que delegaria a grandes trustes todas essas ações e que fossem encampadas com ética pelas grandes corporações.

Sei que todas essas hortinhas parecem triviais e de brincadeira, mas não é o que acham os idealizadores das novas cidades.

Vejo por mim, que tenho um sítio que poderia nos alimentar e com caseiros inteligentes que tomam conta de lá há 30 anos. Custo a acreditar que já mandei para lá três pomares e instalei água gotejando em cada pé de fruta. Morreram todas e os maravilhosos caseiros jamais plantaram uma árvore durante 30 anos. A falta de motivação deve ser do tamanho da alta motivação do Carlo Petrini.

Continuarei procurando livros que nos esclareçam. Continuarei a não plantar nem cozinhar por causa da dor nas costas e por outros motivos de trabalho com os quais ganho a vida. Enfim, sinto-me muito longe dessa cidade utópica descrita por Carolyn Steel, no seu livro "Hungry City" ("Cidade Faminta", em tradução livre), mas me interesso muito pelo assunto apesar de pressentir que não viverei para ver e para comer essa cidade antiga e muito moderna.

Tópicos relacionados

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.