Nina Horta

Escritora e colunista de gastronomia, formada em educação pela USP.

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Nina Horta
Descrição de chapéu Otavio Frias Filho

Figura franzina por fora e de aço por dentro

No meio de todos da Folha havia alguém que se devia amar porque estava de olho

Pensar na morte do Otavio Frias Filho só me deixa mais chateada ainda, quanto mais por não tê-lo conhecido, como parece que ninguém conhecia, e por minha timidez e pela timidez dele.

Tenho vergonha de patrões, não quero que me vejam de perto e gostaria de conhecê-los melhor, mas deixa pra lá, fica para outra.

Entrei na redação da Folha pela primeira e última vez quando me admitiram lá para escrever receitas de panquecas, lugar cedido pelo meu amigo Josimar Melo. Fiquei bem quieta, sabia que era um posto cobiçado, escrever sobre panquecas na Folha, e temia que me roubassem o emprego antes que começasse.

E a minha vida passou a ser dominada pelo que eu chamava de "meninos". Eu era casada, com filhos, tinha um bufê recém-aberto e os meninos queriam o meu sangue, queriam me comer viva. A função deles era pedir matéria, passar recado, censurar as “viúvas” e os parágrafos, dizer que as minhas crônicas não valiam um tostão furado. Só que jamais emitiam essas opiniões na primeira pessoa. “Eles” queriam mais toques, “eles” não gostam de sardinha, “eles” querem que você ponha o endereço da mangueira que mencionou na matéria. Mas, menino, é crônica, e mangueira não tem endereço! "Mas eles querem o endereço". Era de chorar. “Eles” nos odiavam, queriam nos ver longe. Claro que essa figura se materializava para nós, novatos, na figura do chefe, na figura do Otavio, lá, sério, numa escrivaninha, alterando as nossas vidas, contando quantas colheres de açúcar púnhamos no bolo.

Muitas vezes os meninos não telefonavam mais ou paravam de atender o telefone. Era sinal de que estávamos sem emprego, dispensados. “Eles” haviam resolvido isso. Eu corria para os pacificadores, para Sérgio Dávila ou Suzana Singer. Resolviam meus problemas, mas “eles” continuavam de sobreaviso, prontos a atacar à menor possibilidade.

Um dia foi tudo esclarecido, por um dos meninos mesmo, num momento de desespero. “Você não entende? Entramos para a Folha como o orgulho de nossas mães, a promessa de nosso futuro, a certeza de ombrear com a elite intelectual, com os assassinos, com tudo que é notório, e acabamos aqui com você, editando receita de empadinha! Culinária? E a economia, e a política? E a glória?”

Foi daí que um dia aconteceu aquilo que já contei. Aquele chefe Otavio, que não gostava de sardinhas e parágrafos, estava ao telefone e queria me dizer que não fora despedida. Que deveria ficar, tirasse umas férias, mas ficasse. Ele iria estar de olho para ver se eu cumpria a promessa. E um dia, acho que na festa de 80 anos da Folha, disse baixinho que lia as minhas coisas e gostava. Nem sei direito se isso é verdade ou "wishful thinking". Juro, não sei. Nessas alturas eu já admirava a figura franzina por fora e de aço por dentro, que escrevia, que ia aos confins provar ayahuasca, sabe, era um pouco o infante D. Miguel que levantava os Jacintos do lajedo quando escorregavam em cascas de laranja.

Acreditem, nem preciso repetir, desenvolvi uma fidelidade doentia, são 30 anos de acreditar na Folha e não aceitar convite nem do New York Times, se me convidassem. Acho que foi isso, no meio de todos “eles” havia alguém que se devia amar porque estava de olho. Nada melhor do que viver a vida com alguém de olho. É só o que importa.

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