Nina Horta

Escritora e colunista de gastronomia, formada em educação pela USP.

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Nina Horta

Quando se é coreano nos Estados Unidos

Sempre gosto de fazer lembrar os problemas que a comida diferente causa para as crianças

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tigela de cerâmica branca com kimchi
Kimchi, conserva de verduras fermentada - Folhapress

Crônica

Meu nome é Ray Ahu. Vim para os Estados Unidos com meses de idade. Quando se é coreano, há sempre um cheiro de fermentado, alho e pimenta por perto, o que complica as coisas se você foi transferido pequeno para outro país. Não me parece muito justo, pois na rua, nós, crianças, mergulhamos em pizzas e cachorros-quentes sem grandes problemas. Ao se chegar em casa, com minhas duas geladeiras, a coisa muda. Minha mãe achava por bem ter as duas para separar os cheiros. E, se por acaso, um amigo viesse jogar botão ou simplesmente assistir a um jogo de futebol na TV, nós nos servíamos da geladeira americana.

Eu mal podia esperar a hora do almoço quando recebia uma tigela de arroz e quebrava sobre ela um ovo cru que se cozinhava aos fios sobre ele.  E pimenta. Tão diferente e tão simples no meu cotidiano de menino de família coreana. Engraçado a boca estar sempre pronta para comida de mãe. Ela entendia esses problemas de gosto. Já o pai, não. Queria que nos orgulhássemos de nossas raízes e oferecêssemos aos colegas o kimchi. Ela é que sabia das coisas, os meninos odiavam as conservas de pepino, o repolho fermentado. Eu não achava justo, pois comia fast-food americano todo dia e com prazer. No fundo, eu sabia que era o alho centenário, já incrustado na nossa pele que ofendia o paladar americano.

O que ajudava as coisas era a mistura das comidas. Nada melhor que um balde de galinha frita acompanhado por uma conserva apimentada, arroz e kimchi, por exemplo. Não era sempre assim, essas guerras de sabores. Adorávamos, tanto os americanos quanto nós, um siri frito ou no vapor quando os limites das culturas se dissolviam numa gostosura sem fim.

Na minha cabeça, a única solução era a mistura e fui me especializando nisso. Enrolava em folhas de alface meus quitutes preferidos, abusava do catchup, e ia levando a vida.

Agora, com meu filho recém-nascido no colo, filho de um coreano de cultura muito forte e uma americana, fico pensando na confusão entre fermentados e cereais no café da manhã. Minha mulher se importa muito com a ideia de que o bebê não perca as raízes e insiste que ele aprenda as duas línguas... e coma de todas as comidas. Acredito que, como minha mãe, se pudesse ela teria um seio coreano e um americano para iniciá-lo desde a mais tenra idade. Vai ser bom, vai crescer com fusion food, e, se comer como os americanos, o principal vai ser abacate, kale, e comida mexicana ou tex-mex. Ou o que seja, contanto que venha a ser um americaninho feliz.

PS – Sempre gosto de fazer lembrar os problemas que a comida diferente causa para as crianças. A comida é algo tão visceral que pode nos afastar de uma amizade, de uma experiência, pode causar o tal de bullying tão moderno e ele mesmo sem tradução. Publiquei aqui a receita de uma conserva de uvas que foi a coisa mais deliciosa que provamos nos últimos tempos. Era uma receita coreana e ficamos economizando e esperando a hora de juntar mais uvas para que pegassem o mesmo gosto. Pois acreditem que a faxineira mineira provou e jogou fora, achou azeda, Ora, ora, quando pensamos que as diferenças culturais estão prestes a acabar, temos uma surpresa dessas. Também não acho justo, eu como dendê, mexidinho, rapadura, na boa, ela também precisa se acostumar. É a globalização, ora essa!

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