Imagine se descobríssemos hoje que a hora não tem 60 minutos e que o metro não tem 100 centímetros. Foi isso o que aconteceu com a invasão do Capitólio no final do governo Trump, porque os Estados Unidos, queiramos ou não, é a métrica da democracia. Isso pode ser a Covid-21. E neste caso também não podemos tratá-la como uma gripezinha.
Trump não fez aquilo só de rompante. Ao invadir o Parlamento, fez um movimento para não ser um ex-presidente. Ele quer ser líder de uma oposição militante que não vai dar palestras pelo mundo, mas nas cidades americanas, atiçando a América contra Joe Biden.
Eu fui estudante de intercâmbio no interior de Iowa, meio-oeste americano, na minúscula cidade de Pisgah. Meus “pais” americanos, o fazendeiro Donald Messenger e a professora primária Dolores Messenger, me ensinaram a compreender essa América que muitos não querem compreender ou mesmo enxergar.
Essa América profunda responsabiliza grandes empresas e big techs por terem deslocado a produção para a China e acabado com milhares de cidadezinhas como Pisgah. Se isso é verdade ou mentira, caros amigos e amigas, infelizmente não importa muito –estamos falando de política.
O governo Trump mentiu com muita competência. Fez algumas coisas razoáveis comunicadas de um jeito horrível e coisas horríveis comunicadas de um jeito mais horrível ainda.
Mas se Trump é um horror, Trump é também um fato. Na América Latina, estamos acostumados a lidar com populismos personalistas que vicejam por aqui, muitas vezes como guerrilha. Os americanos, não. Os EUA, com todo o seu poderio, nunca aprenderam a lutar contra guerrilhas. Todas em que se meteram, sofreram anos e apanharam muito.
Eu acho que só se pode combater fenômenos como Trump compreendendo o que ele fez para ter tantos e tantos simpatizantes, inclusive amigos meus bem informados, que repudiam a invasão do Capitólio e a gestão da pandemia, mas aprovam algumas coisas da sua administração.
Odiar Trump traz tudo o que Trump quer: audiência. Só é possível derrotar Trump (e o que ele representa) entendendo as demandas que ele entendeu. Biden terá de fazer uma enorme e contínua campanha de comunicação muito bem estruturada para tirar o microfone de Trump e a linha política dele. Já o serviço secreto, que protege os ex-presidentes, terá o papel mais ambíguo: proteger Trump de extremistas anti-Trump e proteger a América de Trump.
Mas não se combate uma não-América criando uma outra não-América do bem. Se os meus amigos democratas confundirem seguidores honrados e legítimos de Trump (ele teve 70 milhões de votos) com os extremistas de Trump, podem atolar num Vietnã interno. Se a imprensa americana ficar cobrindo cada provocação de Trump para manter a alta audiência da era Trump, será sua melhor aliada.
Trump é um vírus transmitido pela boca, altamente contagioso. Biden não pode negar essa pandemia. Ele tem que vacinar a população de alto risco: os descontemplados pela globalização, os dizimados pelo mundo digital e os enterrados pela automatização e robotização do mundo.
Ser irracional contra o irracional não funciona. Trump não saiu totalmente do poder. Ele tem audiência, e audiência é poder. Mas a imprensa pode tirar seu microfone tóxico.
Biden terá que ser Roosevelt criando um newdeal.com e ser Churchill combatendo o homem que faz coisas incompreensíveis para parecer que compreende os incompreendidos.
Comentários
Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.