Nosso estranho amor

Paixões, desencontros, estabilidade e loucuras segundo Anna Virginia Balloussier, Pedro Mairal, Milly Lacombe e Chico Felitti. Uma pausa nas notícias pra gente lembrar tudo aquilo que também interessa demais.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Nosso estranho amor

Laura

Não consigo mais trabalhar ou dormir. Quero que ela veja meu biquíni e o meu cachorro e a minha pose na rede

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tati Bernardi
Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão. Pela Cia das letras lançou "Depois a Louca sou eu" e "Você nunca mais vai ficar sozinha".

Numa agradável noite de setembro estamos comemorando dois meses de namoro quando ele, até então bastante moreno e apaixonado, fica pálido e estático. Na porta do restaurante vejo uma garota baixinha, com enormes olhos verdes. “Aquela é a Laura”, ele pronuncia com dificuldade, adivinhando que seriam suas últimas palavras antes de colapsar. “Que Laura?”, eu pergunto. “A Laura”. Diante disso sustento minha cara de desavisada por alguns segundos, até perceber que meu crânio fora alvejado pela troca de olhares entre meu amor e a mocinha levemente siliconada.

“Você parece um zumbi eufórico”, falo no carro, voltando para o apartamento dele. Um metro e oitenta de trapo tremeliquento. Muda de música toda hora, mas não consegue lembrar como dar seta para entrar à esquerda. Ameaço pegar todas as minhas coisas (um casaco, um par de chinelos e um travesseiro) e nunca mais voltar. Ele então desembesta a falar.

Foram cinco anos de relacionamento, iam casar, começaram a brigar, ela o largou, ele ficou péssimo, daquele jeito que não quer tomar banho nem tomar sopa nem viver. Lamento e pergunto se isso tem muitos anos. “Não… isso tudo foi… em maio”. Oi?!

Banhista na praia do Arpoador, no Rio
Banhista na praia do Arpoador, no Rio - Daniel Marenco - 10.mai.2012/Folhapress

Decido dormir na minha casa (eu já estava querendo fazer sete anos de diarreia nervosa e achei mais prudente) e passo a noite vendo o Orkut da Laura. Analiso cada centímetro das suas doze fotos perfeitas (não podia postar mais que isso, lembra?) e leio compulsivamente, por várias vezes, cada um dos depoimentos que deixavam pra ela: “Ai, Lau-lau, lembra desse diaaaa, amigaaaa? Foi fo-dah demais néamm?”. Fico tranquila porque concluo, lá pelas cinco da manhã, que Laura e seus amigos, apesar de belíssimos, bronzeadíssimos e bem-de-vidíssimos, são uma mistura explosiva de limitação intelectual com abuso de drogas. Estou bem, estou superbem, a parada está ganha para o meu lado.

No dia seguinte, no trabalho, conto o caso pra umas dez pessoas e as faço ficarem em pé, em torno da minha mesa, examinando as fotos de Laura. Todos em silêncio. “Meio nadinha ela, né?” Concordam, porque querem meu bem. Até que um cara solta: “Olha… mas é gata, hein?!”. E uma mulher assente: “Minha nossa senhora!”. Expulso todo mundo e tento focar no trabalho. Impossível. Abro o Orkut a cada cinco minutos e volto a esquadrinhar a foto em que Laura aparece de biquíni brincando com um cachorro. Ela sorri, uma mecha de cabelo caída sobre seus olhos gigantes e claros e com cílios rococó. Se eu aumentasse a visualização, poderia notar uns poucos fios colados em seus lábios. Fico virando meu rosto pra encarar a imagem em que Laura está deitada em uma rede. Quero olho no olho. Oi, Laura, você vem sempre aqui? O que é isso que estou sentindo?

Começo a malhar, corto o cabelo, mudo um pouco meu estilo, passo a gostar mais de praia, invento apelidos idiotas. E não sei bem o que quero com isso. Eu morria por aquele rapaz, mas ando até meio sem vontade de transar. Acho que ele é um idiota por ter conseguido ficar cinco anos com Laura e a ter deixado escapar. Só consigo me animar quando o imagino com Laura. Laura em cima dele, Laura de conchinha com ele, Laura tomando banho com ele.

Semana que vem vai ter uma festa. Ele não sabe se quer ir porque “ela estará lá!”. Fico excitadíssima. Mas chamo isso de ciúme, de obsessão, de inveja, de possessividade. Chamo isso de “estou perdidamente apaixonada por esse cara e não posso perdê-lo”. Vou à festa. Sigo Laura até o banheiro. Sigo Laura na fila pra pegar bebida. Que cheiro tem o cabelo dela? Quero terminar com meu namorado apenas para ser Laura naquele instante. Estou quase escrevendo um depoimento pra Laura. Não consigo mais trabalhar ou dormir. Quero que ela veja meu biquíni e o meu cachorro e a minha pose na rede. Quero que ela tire dos meus lábios o cabelo que grudou.

Ai, Laura, como eu sofri! E pensar que 18 anos depois te encontro em outro restaurante. Já estou casada, com uma filha. Na hora congelo, coração dispara, viro um zumbi eufórico, um trapo tremeliquento. Meu marido me pergunta o que é que eu tenho. Eu tenho bom gosto.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.