Nosso estranho amor

Paixões, desencontros, estabilidade e loucuras segundo Anna Virginia Balloussier, Pedro Mairal, Milly Lacombe e Chico Felitti. Uma pausa nas notícias pra gente lembrar tudo aquilo que também interessa demais.

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Nosso estranho amor

Uma rua cria três crianças

As ligações familiares podem parecer complicadas, mas o sentimento é simples

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Chico Felitti

Repórter ganhador dos prêmios Petrobrás e Comunique-se de jornalismo, é autor de “Ricardo & Vânia” e "A Casa - A História da Seita de João de Deus".

Andrea Ramos e Adriana Pereira Gomes são irmãs sem serem irmãs. As duas são melhores amigas e vizinhas de casa na rua Luigi Caruso, em Parelheiros. Em dia de semana, também fazem faxina e salgados para fora.

No fim de abril de 2018, Andrea estava no centro, limpando uma casa, e o telefone tocou. Era Adriana: “Oi, amiga. Eu vou pegar a Margarida”. Foi até a varanda para continuar a conversa. “Amiga, ontem era uma da manhã e ela tava na rua. Qualquer hora vai acontecer alguma coisa com essa menina. A gente pode ignorar, fingir que não está vendo, ou fazer alguma coisa.”

Margarida era a filha de oito anos de outra vizinha delas, que tinha mais duas crianças e lutava com o vício. A ligação de Adriana não era uma proposta. Ela já tinha decidido agir e sabia que a amiga Andrea a acompanharia. Assim que desligou o telefone, Adriana correu na casa das crianças e fez um pedido para a mãe biológica delas: “Deixa a Margarida ficar lá em casa? Eu cuido dela até a situação melhorar”. A resposta foi: “Ela foi buscar pão. Quando ela chegar, te mando”.

Andrea e Adriana estavam chegando aos 40 anos de idade, e somadas já tinham seis filhos. As duas não sabiam o que era a vida daquela mulher, que sumia do bairro por dias seguidos. Não sabiam das dificuldades que passava na casa de um cômodo, que só tinha margarina na geladeira. Não sabiam onde estavam os pais das crianças, tão responsáveis pela criação quanto aquela mãe. Mas previam o que seria o futuro das crianças.

Criança revira caçamba de lixo na região de Parelheiros, na zona sul de São Paulo - Lalo de Almeida/Folhapress

Margarida foi de mão dada com Adriana para casa. Prestes a completar nove anos, ela tinha 17 quilos, dez a menos do que a média.

Gabriela Gomes Burlan, filha de Adriana, com 21 anos, decidiu cuidar do irmão de Margarida, Jacinto, de quatro anos de idade. “Meu marido ficou sabendo que ia ser pai em 25 minutos”, diz Gabriela.

No dia seguinte, a própria mãe biológica levou o filho caçula, Antúrio, então com dois anos, para a casa de Andrea. “Na minha cabeça, eu pensei: ‘vou cuidar no fim de semana do feriado do Primeiro de Maio e devolver’.” Andrea, que não foi criada pela mãe, chorou enquanto dava um banho de uma hora no bebê.

Na semana seguinte, o Conselho Tutelar apareceu para levar as três crianças para um abrigo. Não era a primeira visita do Estado. A conselheira foi à casa das vizinhas e viu que estavam limpas, alimentadas e bem instaladas. Permitiu que ficassem. Quando o fim de semana prolongado terminou, as três vizinhas entraram em uma saga para adotar as crianças, que passou por uma rodovia de papéis: termos de responsabilidade de um mês, termos de responsabilidade de dois meses e guardas provisórias. Passados três anos, estão com a guarda definitiva das crianças, esperando a pandemia passar para seguir com a adoção.

Já nos primeiros meses, Antúrio, que não falava, olhou para Andrea e disse uma das suas primeiras palavras: Mãe. “Foi muito lindo. Parecia ser coisa de uma vida toda.” Mas a descoberta de uma mãe não excluía a que veio antes. A mãe biológica foi ao aniversário de três anos de Antúrio. E no de Margarida também. “A gente procura não insistir, cobrar a presença dela, porque ela tem uma vida completamente diferente”, diz Adriana.

As crianças sabem que são irmãs. Sabem também que têm uma mãe biológica, que às vezes aparece. Em um dia de abril, Antúrio correu até ela na rua e lhe deu um abraço. A mulher correspondeu, e então seguiu seu caminho. “Hoje, somos uma família gigante e bem doida”, diz Andrea. Por exemplo: Gabriela é mãe de Jacinto, que é irmão de Margarida. Acontece que Gabriela também é filha de Adriana, mãe de Margarida, irmã de Jacinto. Portanto, Gabriela é ao mesmo tempo irmã e madrasta de Margarida.

As ligações familiares podem parecer complicadas, vendo de fora, mas o sentimento é simples. Em um sábado recente, Margarida, de 12 anos, fez birra em um almoço de família. Disse que ia fugir se não lhe dessem um doce. Andrea agachou, a olhou nos olhos e disse: “Você não faz isso comigo. A gente é família. E, não importa o que aconteça, eu vou ser sua família para sempre”.

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