Nosso estranho amor

Paixões, desencontros, estabilidade e loucuras segundo Anna Virginia Balloussier, Pedro Mairal, Milly Lacombe e Chico Felitti. Uma pausa nas notícias pra gente lembrar tudo aquilo que também interessa demais.

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Nosso estranho amor
Descrição de chapéu

A cama racha

Precisou do verbo juntar para aquela mulher perceber que estava de saco cheio do verbo dividir

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Decidiram comemorar o aniversário de cinco anos de casamento com uma viagem romântica para Montevidéu. Antes de ir, ela comentou com a analista que voltaria grávida. “Longe do trabalho e dos problemas, minha meta é transar o dia inteiro.”

Como faziam sempre, no dia a dia e em viagens, racharam o táxi até o aeroporto, o lanche que comeram antes de embarcar, o peso das malas de mão e cada um pagou pela sua passagem.

A companhia aérea só deu uma bala de chocolate para o casal, porque o marido estava no banheiro. Quando ele voltou, ela havia mordido metade e o aguardava sorrindo. Ele comeu também sorrindo seu quinhão de felicidade e lhe deu um selinho doce.

O assunto “dividimos tudo o tempo todo” aparecia sempre na terapia. Era uma espécie de troféu pra ela. Como se dissesse que encontrou sua cara metade. Enfim, dividia a vida com alguém. Aquele homem alto era só meio homem sem aquela mulher que falava e falava e falava, mas nunca parecia dizer o que queria. “Mas será que é só isso mesmo? ”A profissional queria saber. “Claro que é. Eu adoro que seja assim.”

Ao chegar no hotel, ambos deram seus cartões de créditos “metade nesse, metade nesse” e combinaram que fariam o mesmo nas refeições, nos passeios e até se comprassem um suco. Aliás, melhor dizendo, nem precisaram desse acordo verbal. A obsessão pela divisão justa e centesimal já estava posta desde o começo do relacionamento. Eles apenas se olharam e a recepcionista foi obrigada a entender.

Mas daí aconteceu o furo na Matrix. Ela precisou ir ao banheiro e ele seguiu no balcão preenchendo as fichas dos hóspedes. Foi bem quando a recepcionista, envergonhada pelo erro, levando sua pequena mão na testa. “Lo siento, señor”, informou que o quarto 14 oferecia duas camas de solteiro. Era preciso mudá-los para o 24, com uma vista melhor e uma confortável cama de casal. Porém, seria acrescentado 27 dólares na diária. “Todo bien?”

A esposa, aliviada por ter se livrado de duas garrafinhas de água desfrutadas com o mozão (ao custo de R$ 8 para cada um) chegou a tempo de ouvir seu cônjuge solucionando o problema: “Não, não precisa, a gente junta as camas de solteiro”.

Um pouco sem jeito, mas solícita de dar pena, a recepcionista já ia pedir para que dois funcionários subissem rapidamente ao quarto para tal manejo. Foi quando irrompeu naquele salão o eco de um profundo, gutural e bolorento grito de “Nããão!!!”.

“Não, não, não...” ela seguia vociferando, lágrimas quentes e gordas nos olhos, o buço oleoso em ímpeto —acho até que o nervosismo lhe presenteou com pizzas bem escuras na camisa de seda verde-água. Ela sentiu na hora os pesares na lombar. Ela estava cansada há pelo menos uns cinco anos daquela relação de cinco anos. Só que a extenuação veio toda de uma vez, naquele segundo.

O homem ficou com a boca meio aberta, olhando para aquela maluca que chacoalha os dedos de forma tão agressiva que mais parecia uma mímica de limpador de para-brisa em dia de dilúvio.

E então a mulher arrancou dólares e pesos uruguaios da bolsa, começou a fazer uma chuva histérica com eles e a gritar: “Eu pago a porra da cama de casal!”. “Eu pago a porra da cama de casal!!!”. O marido tentou acalmá-la. Falou baixo, mas torcendo para que ouvissem “deve ser o tratamento de fertilidade, está mexendo com os seus nervos”.

Mas ela estava decidida a não rachar mais nada. Não racharia sua cama ao meio. Não racharia mais nem uma hora da sua existência, muito menos a criação de novos humanos. Não dormiria com uma vala, um corte, uma cisão nas costas.

Sua analista, dias depois, diria como são interessantes as palavras. Precisou de um verbo juntar para que aquela mulher percebesse como estava de saco cheio do verbo dividir. Na separação, ela quis muito mais do que a metade que lhe cabia.

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