Nosso estranho amor

Paixões, desencontros, estabilidade e loucuras segundo Anna Virginia Balloussier, Pedro Mairal, Milly Lacombe e Chico Felitti. Uma pausa nas notícias pra gente lembrar tudo aquilo que também interessa demais.

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Nosso estranho amor

Família real brasileira

Marlene olhava para a neta e não enxergava a filha

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Milly Lacombe

Silvio estava dormindo quando escutou o celular tocar. Telefone não toca no meio da noite trazendo notícias de saúde e prosperidade, pensou. Atendeu ofegante. "O senhor é parente de Janaína dos Santos?". Sou pai, ele disse. "Pode vir para a Santa Casa?" O que aconteceu?, ele perguntou. Depois de um silêncio que pareceu eterno, a voz do outro lado falou: vem assim que puder. Marlene já estava sentada na cama quando Silvio largou as palavras que ela mais temia escutar: "Aconteceu alguma coisa com a Jana". No hospital, souberam que Janaína e sua mulher tinham sofrido um acidente de carro e que morreram a caminho do hospital. Marlene perguntou se havia uma criança com elas e souberam que a neta não estava no carro, e essa seria a única boa notícia por muito tempo.

Inês, constava em testamento, ficaria sob os cuidados dos avós. E Silvio e Marlene eram os únicos avós vivos. A tristeza se misturou ao caos de ter em casa um bebê de menos de três anos. Marlene olhava para a neta e não enxergava a filha. "Ela não se parece com a Jana, Silvio!". Silvio queria responder que não haveria mesmo como se parecer; Claudia era filha de coreanos e tinha gerado Inês com um amigo de infância. Em que circunstância Marlene achava que Inês poderia se parecer com Janaína?

Crianças em salão de beleza na Coreia do Sul
Garota com traços orientais - Jean Chung/The Washington Post

As primeiras semanas foram de confusão e desespero. Marlene não sabia o que fazer com a criança que chorava demais, Silvio não sabia o que fazer com a tristeza que doía demais. Ele era advogado e vez ou outra levava o bebê para o trabalho. Dizia que fazia isso para Marlene poder respirar, mas fazia isso porque com Inês se sentia mais perto da filha. Na rua, as pessoas fitavam o casal negro e de meia idade que carregava com eles uma criança oriental. No começo, Marlene não ligou, mas depois de alguns meses começou a se enfurecer. "Roubei a criança numa viagem à Coreia", dizia aos que encaravam.

No verão, foram para o Rio na companhia dos três filhos, tios de Inês. Era uma família de negros entretendo uma criança oriental que corria pela praia gritando vovô e vovó. "Custava a Jana ter gerado essa criança?", reclamava Marlene quando os olhares eram excessivos. "Mãe, o combinado era a Claudia ter o primeiro e a Jana o segundo, você sabe disso, não faz a louca", respondiam em rodízio. Marlene ignorava e, no dia seguinte, repetia a pirraça. "Queria poder ver a Jana em você, meu bebê", dizia à neta quando estavam sozinhas.

Com o tempo, retomaram algum ritmo: Inês ia ao trabalho com o avô, ao terreiro com a avó, a jogos com os tios. De noite, Silvio lia para Inês na cama, como tantas vezes fez com a filha. Pela manhã, Marlene acordava cedo para picar o mamão e descascar a laranja que Inês amava, como tantas vezes fez para a filha. Aos domingos, comiam no Bom Retiro, num restaurante coreano do qual viraram fregueses depois de muito frequentar o bairro de modo a fazer Inês se reconhecer pelas ruas da cidade.

Os anos passaram, Inês cresceu e aos 17 entrou em biologia. Para celebrar, Silvio deu à neta uma viagem de dois meses à Austrália, país que ela sonhava conhecer. Os avós foram levá-la ao aeroporto; seria a primeira vez que passariam tanto tempo longe. Na despedida, Marlene abraçou Inês e não largou. Depois de um tempo, Silvio tocou o ombro de Marlene para que ela soltasse Inês, que estava rindo. "Vó, Ogum tá me guiando, fica tranquila", disse segurando com as duas mãos o rosto da avó e dando um beijo demorado. Vendo a neta embarcar, Marlene olhou para Silvio e disse: "Não poderia ser mais perecida com a Jana".

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