Nosso estranho amor

Paixões, desencontros, estabilidade e loucuras segundo Anna Virginia Balloussier, Pedro Mairal, Milly Lacombe e Chico Felitti. Uma pausa nas notícias pra gente lembrar tudo aquilo que também interessa demais.

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Nosso estranho amor

A arte do desencontro

Eles se conheceram em uma viagem de trabalho

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Milly Lacombe

Eles se conheceram em uma viagem de trabalho. Eram médicos recém-formados e estavam em seu primeiro congresso fora do Brasil. Tinham 30 e poucos anos quando, em meio de uma centena de profissionais muito mais velhos, cruzaram olhares numa sala do centro de convenções do hotel em que estavam hospedados. Ela andou até onde ele estava e sentou ao lado sem dizer nada. Foi assim durante os dois dias de trabalho até que, ao final da última apresentação, ela estendeu a mão e se apresentou. Ele a convidou para jantar e decidiram ir direto dali porque os dois voltariam ao Brasil no dia seguinte: ela para Fortaleza, via Rio de Janeiro; ele para Porto Alegre, via São Paulo. Conversaram e descobriram as coisas que tinham em comum. Ela o fez rir a ponto de ele engasgar, ele a fez chorar explicando por que escolheu fazer medicina: perdeu a mãe aos 5 anos para um câncer invasivo e, desde então, a qualquer um que falasse com ele, dizia: "vou ser médico para que ninguém mais fique sem mãe". Voltaram para o hotel e ele foi para o quarto dela. Fizeram amor durante toda a noite intercalando sexo com conversa. Ela disse a ele coisas que nunca tinha contado a outra pessoa, ele revelou a ela medos que ele mesmo evitava acessar. Quando o dia estava amanhecendo e eles entenderam que se separariam, ela contou que era casada havia dois anos com uma pessoa que amava. Ele disse que era casado havia cinco anos, tinha dois filhos e que também amava a mulher. Ficaram em silêncio por algum tempo e então ela teve uma ideia: a gente se encontra no bar desse mesmo hotel daqui a 30 anos. Marcaram o dia e a hora: 12 de julho de 2019 às 18h. Não trocaram telefone nem sobrenomes.

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No dia e na hora marcada ele chegou cedo ao bar. Às seis da tarde viu uma mulher de uns 60 anos entrando e indo em direção a ele. Seria ela? Tão diferente. A mulher parou ao lado dele e perguntou se ele era o Mauricio. Ele fez que sim, sem a reconhecer. Ela disse que se chamava Estela, ele entendeu que não era ela e estranhou quando a mulher se sentou. "Estou esperando uma pessoa", ele disse tentando ser educado. "A pessoa sou eu". "Mas você não é a Renata". Eu sou a mulher da Renata, ela disse.

Ele ficou atordoado e ela, depois de um tempo, falou: "Renata e eu fomos casadas por 31 anos. Ela me contou sobre você quando voltou para casa. Muitos anos depois, quando a doença progrediu, ela me pediu que eu viesse ao seu encontro se ela morresse". Estela tirou da bolsa um envelope e entregou a ele. Do que ela morreu, ele quis saber absorvido por aquele envelope. De câncer, ela respondeu. Eu sinto muito, ele disse. Eu também, ela falou. "Sinto muito pelo que fizemos", ele disse em um tom mais baixo. Estela ficou em silêncio e viu que lágrimas desciam pelo rosto dele. Em cima da mesa, a mão trêmula de Mauricio segurava o envelope. Estela colocou sua mão sobre a dele e disse: Eu te odiei por muito tempo. Mas a vida seguiu e Renata e eu nos reencontramos. Ela nunca me contou detalhes do que houve, mas também nunca escondeu a importância daquela noite. Um tipo de sinceridade que primeiro me fez odiá-la e depois me fez admirá-la. Eu espero que essa carta te traga algum conforto. Não sei o que está escrito, mas ela me fez um último pedido: que quando te entregasse a carta eu deixasse claro que, naquela noite, ela te amou por toda uma vida". Estela tirou a mão de cima da dele, levantou, tocou levemente em seu ombro e saiu. Não olhou para trás e por isso não viu Mauricio chorando como uma criança de cinco anos.

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