Nosso estranho amor

Paixões, desencontros, estabilidade e loucuras segundo Anna Virginia Balloussier, Pedro Mairal, Milly Lacombe e Chico Felitti. Uma pausa nas notícias pra gente lembrar tudo aquilo que também interessa demais.

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Nosso estranho amor

Três dias de hotel

O que aconteceu com Miguel Barão, que agora se encontra em posição fetal no hotel NH de Lisboa?

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Pedro Mairal

O que aconteceu com Miguel Barão, que agora se encontra em posição fetal no hotel NH de Lisboa? Se chegou faz três dias, todo contente, disposto a tudo, à frente de seu futuro, como uma figura de proa de si mesmo, por que ficou aniquilado, escondido do mundo, com as cortinas fechadas em pleno dia de sol? Marisa Borges, foi isso que aconteceu.

Ele foi convidado pela editora que publica sua obra em Portugal para apresentar o novo livro e dar conferência no museu Gulbenkian. Na mesma noite em que chegou ao hotel, recebeu mensagem de Marisa Borges dizendo que iria buscá-lo no dia seguinte. Deu um google nela. Havia várias mulheres com esse nome, mas somando-se ao nome da editora, achou que a tinha identificado em uma foto. Era bonita. Foi dormir com essa vaga esperança erótica de quarentão casado.

Ele a viu chegar em um carrinho esportivo, conversível. Era um Porsche Spyder antigo. Miguel Barão ficou mudo. Marisa não era muito simpática, usava uma jaqueta de couro e tinha os cabelos presos em um rabo de cavalo mal amarrado. Ele não entendia uma só palavra do que ela dizia. Falava um português muito fechado, indecifrável por trás do ruído do motor, do vento e da rua. Ele pareceu entender que iam a Sintra, que ela era a responsável por ciceroneá-lo. Miguel a observava dirigir, pôr as marchas, pegar as curvas fechadas. Algo nela o deixou fascinado e atemorizado ao mesmo tempo. O diálogo se apagou porque ficou cansativo não se entender. Ela lhe apontava coisas, dizia algo e ele assentia.

Ele chegou a Sintra enjoado. O palácio lhe pareceu horrível, tosco, como uma Disney alemã levada a sério. Eles o percorreram rapidamente, por ser um compromisso mútuo, e em seguida entraram no carro. Marisa tirou a jaqueta. Tinha, debaixo dela, uma regata verde. Quando pegava a alavanca do câmbio, dava para ver os pelos de sua axila. Ela notou a curiosidade dele e fingiu que ajustava o espelho retrovisor para mostrá-los melhor. O ar se movimentava e então chegava a Miguel o cheiro dela, um cheiro forte de transpiração que arrematou seu silêncio. Estava tão acostumado a viver rodeado de mulheres depiladas, que aquela axila natural o fez sentir como se tivesse visto algo íntimo, algo sexual, o púbis escuro dela.

Passou a tarde inteira no hotel sonhando acordado com Marisa. Imaginou que afundava o nariz em sua axila, ela nua na cama. Abriu o laptop, procurou a categoria hairy em uma página pornô. Teve que fechar tudo e tomar banho. Tentou dormir para acertar o jet lag, mas não conseguiu.

À noite se encontraram em um restaurante no antigo porto. Marisa já estava ali com Sonia, a editora, de uns 35 anos, que o recebeu com a reluzente edição de seu romance. Era um restaurante meio escuro, com poltronas baixas, onde depois se apresentou uma banda de jazz. O barulho fez com que o diálogo se rompesse e ficaram Marisa e a editora falando entre si, dividindo segredos e alguma risada. Miguel se sentiu cansado de repente e começou a bocejar. Marisa disse "Quer ir ao hotel?", e ele aceitou, sem entender se havia algo de erótico na proposta. Despediu-se da editora, que ficou ali sentada.

Marisa o levou ao hotel a toda velocidade, sem dizer palavra. Deram a volta na Praça do Comércio fazendo os pneus cantarem. Miguel se segurou forte na maçaneta da porta e entendeu a pressa dela. Sonia a esperava no restaurante. Em poucos minutos o Porsche cravou os freios na frente do hotel, Miguel desceu. Faltou pouco para que ela lhe desse um chutinho para fazê-lo descer do carro. Marisa Borges acelerou sem se despedir e se perdeu na noite. Miguel Barão só voltou a sair do hotel para apresentar o livro e dar a conferência.

Erramos: o texto foi alterado

Por erro da Redação, o texto estava assinado por Milly Lacombe. O autor é Pedro Mairal.

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