Nosso estranho amor

Paixões, desencontros, estabilidade e loucuras segundo Anna Virginia Balloussier, Pedro Mairal, Milly Lacombe e Chico Felitti. Uma pausa nas notícias pra gente lembrar tudo aquilo que também interessa demais.

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Nosso estranho amor
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Nunca choro

É o amor o que me faz lacrimejar, nunca a dor

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Pedro Mairal

Nunca choro, choro muito pouco, mas choro nos sonhos. Choro a cântaros, com soluços e espasmos, percorrendo construções enormes, com escadas e recantos, choro com uma dor que preenche todo o espaço, como se fosse a arquitetura do meu pranto que vai se erguendo por onde passo.

Meu choro erige corredores, salões, rampas, curvas, pontes e teatros. Lugares vazios pelos quais passo chorando.

Uma vez sonhei que nesse perambular do choro eu tinha que interpretar Hamlet e de repente se abriam as cortinas, e o que eu pensava que era um ensaio diante de uma plateia vazia era a estreia, a primeira função, todo o público ali olhando e eu ainda sem saber o texto, mas chorava e caminhava entre as pessoas, chorava tão bem que os convencia de que a obra era assim, e me seguiam por escadas, falavam entre si, formavam grupos, procuravam tragos, e a obra se dissolvia na realidade e já não se sabia qual era o limite da ficção, se eu continuava atuando ou simplesmente era um ator que um momento antes encarnava um Hamlet mudo e chorão.

Nunca choro, choro muito pouco, mas choro nos sonhos - imagesetc - stock.adobe.com

Tenho muito talento nos sonhos. Sobretudo para desfazer situações horríveis. Na vigília, nem tanto.

Mas eu queria falar do choro. Porque posso contar nos dedos de uma mão as vezes que chorei dos 19 ou 20 anos até agora que tenho muito mais. Chorei quando me separei da minha primeira namorada. Chorei quando morreu meu amigo. Chorei quando nasceu meu sobrinho e estava contando à minha namorada como ele era pequenino. Estávamos sentados na cama dela, em sua casa, me lembro, e lhe mostrei com os braços como era mínimo o meu sobrinho, e quando fiz o gesto do quão pequeno ele era no meu braço, abriu-se uma torneira de choro que eu não conseguia explicar, mas acho que senti pela primeira vez a esperança de alguma vez ter um filho. Anos depois nasceram meus filhos e isso me fez chorar.

Quero dizer, é o amor o que me faz chorar. Nunca a dor. Nunca a contenda. É o amor erguendo-se sobre a dor, abrindo passagem através da fúria. Porque quando morreu meu amigo fui pensar nele, em sua risada e nas viagens que fizemos juntos, o que me fez chorar, a paisagem de toda nossa amizade. Não a ideia impossível de que não ia voltar a vê-lo. Isso não se pode entender. Foi o carinho o que se fez de vaso comunicante com a nossa água, o mundo líquido do coração, o simples fato de nos amar. Água doce, água salgada das lágrimas.

O amor é estranho porque não sabemos o que é. Porque é nossa parte ondulante, furtiva, invisível, incontrolável. É uma zona que não conhecemos, mas sempre está. O que acontece é que às vezes acho que a bloqueamos para seguir em frente, porque é preciso ir de um ponto ao outro, atravessar o dia, a cidade, a semana, o mês, é preciso seguir, e embora esteja ali oculta a água verdadeira da força, ainda que o sol de alguém saia sempre deste lado do mar, embora essa seja a única maré que nos rege, de todo modo a bloqueamos, a ocultamos para que não se note tanto, para que não se veja, para que pareça que somos pedra.

Há coisas demais dissolvidas na água da palavra amor: carinho, cuidado, amparo, contenção, paciência, e também desejo, prazer, audácia, esperança, valentia, loucura, e também aliança, cumplicidade, verdade, mistério, e também confiança, companhia, união... Muitas ideias para uma só palavra. Ninguém sabe bem que caralho é o amor. Só sabemos que às vezes nos faz chorar.

Tradução Livia Deorsola

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