Nosso estranho amor

Paixões, desencontros, estabilidade e loucuras segundo Anna Virginia Balloussier, Pedro Mairal, Milly Lacombe e Chico Felitti. Uma pausa nas notícias pra gente lembrar tudo aquilo que também interessa demais.

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Nosso estranho amor

Os cadernos de Adele

Uma escritora interrompida pelo sistema sexo-gênero

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Milly Lacombe

Em 1966, aos 29 anos, ela se casou. Orientada por todas as convenções sociais, teve uma filha no ano seguinte. Depois, a segunda. Em seguida, a terceira e, finalmente, pariu um menino. Seguiu a vida fazendo o que era socialmente esperado: cuidava da casa e das crianças enquanto o marido trabalhava fora. Os filhos estudaram, cresceram, casaram e se mudaram. Os netos começaram a chegar no exato momento em que ela ficou viúva. Assumiu o papel de avó e se manteve ocupada, até porque filhas e filho se revelaram uma gente bastante parideira: durante três décadas novos netos continuaram sendo produzidos. Vista de fora, parecia ter tido até a derradeira fase da existência a mais perfeita vida de mulher branca de classe média paulistana.

Até que um dia, tomando uma taça de vinho com a filha mais velha no apartamento em que passou os últimos 50 anos, de repente se levantou e saiu da sala de jantar em direção ao quarto, andando como andam as pessoas de 84 anos. Voltou com quatro cadernos escolares e os colocou em cima da mesa. O que é isso, a filha quis saber. "Coisas que eu escrevi enquanto vocês cresciam". A filha, com uma mistura de curiosidade e medo, abriu o primeiro.

Caderno com um coração desenhado
Cromaconceptovisual/Pixabay

Nele, linguagem, estrutura e estética gramatical que fazem parte das melhores técnicas literárias. Você que escreveu isso, mãe?, a filha perguntou atônita. A mãe, que tomava mais um gole de vinho, colocou a taça na mesa com o movimento das pessoas debilitadas pela artrose, e balançou a cabeça afirmativamente.

Nas páginas, elaboradas durante muitas madrugadas, o dia a dia de uma solidão imensa. Os diálogos com o marido nos quais ela pedia dinheiro para as compras e ele reclamava que os gastos estavam grandes demais, o silêncio dos filhos que entravam e saíam de casa sem falar com ela, ocupados que estavam de suas adolescências, o peso do trabalho que é cuidar de um lar de seis pessoas, a falta de tempo para que pudesse olhar para ela e não para os outros.

Quanto mais a filha lia, mais afundava a cabeça naqueles cadernos sabendo que não seria capaz de tirar os olhos dali para encarar a mulher do outro lado da mesa. A correção social da vida da mãe desfeita em quatro cadernos confessionais violentamente escritos durante madrugadas de exílio.

Quando tomou coragem para tirar os olhos das páginas, perguntou se a mãe dividia aquelas dores com as amigas. Ela disse que não. "Por quê?", quis saber. "Porque eu ficava envergonhada de parecer que eu estava reclamando de uma vida perfeita, de um marido educado e gentil. Tinha medo de acharem que eu não amava vocês. Ser mãe não exige sacrifícios e amor incondicional?"

A filha então perguntou: "Se você tivesse sabido que a vizinha da porta da frente, e a do apartamento do outro lado da rua, e as demais mulheres desse bairro e dessa cidade estavam passando pelas mesmas coisas, isso teria te feito sofrer menos?" No olhar da mãe, a expressão de quem nunca havia pensando nisso: que aquelas não eram dores apenas suas, mas de muitas outras mulheres como ela. Depois de assimilar a ideia, ela balançou a cabeça dizendo que sim.

A filha entendeu quem era a mulher bem a sua frente: uma escritora interrompida pelo sistema sexo-gênero. Alguém que passou os anos mais potentes da vida silenciada por normas e regras, sozinha dentro de uma casa cheia de gente, trabalhando como só as mães trabalham.

Sem saber o que fazer, me levantei e ajoelhei aos pés de minha mãe colocando a cabeça em seu colo. Pela primeira vez, eu sabia exatamente a quem estava me curvando.

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