Nosso estranho amor

Paixões, desencontros, estabilidade e loucuras segundo Anna Virginia Balloussier, Pedro Mairal, Milly Lacombe e Chico Felitti. Uma pausa nas notícias pra gente lembrar tudo aquilo que também interessa demais.

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Nosso estranho amor
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É proibida a entrada de estranhos

Leitora voraz de romances, Laura fica fascinada com a conexão entre Gonzalo e a misteriosa policial

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Pedro Mairal

Um dia, ao voltar do trabalho, Laura nota que tem um novo vigia em seu edifício. Cumprimenta-o. Deve ter uns 35 anos. Magro, de bom porte, um pouco descomposto, como que cansado ou vulnerável, talvez.

Quando comentam o fato com seu namorado, com quem mora, ela não diz que gosta do vigia, diz "vou com a cara dele". E depois, quando já sabe o nome dele, diz: "Vou com a cara do Gonzalo".

Gonzalo cobre apenas o turno da tarde e é muito cuidadoso ao guardar os pacotes das editoras que mandam livros a ela.

Ele os entrega todo orgulhoso, como se tivesse ficado o dia inteiro esperando que Laura volte do trabalho.

Na literatura, Laura e Gonzalo têm o gosto em comum: romances de amor
Na literatura, Laura e Gonzalo têm o gosto em comum: romances de amor - ermagila - stock.adobe.com

Com o passar das semanas, começam um diálogo sobre os livros e quem os envia. Acontece que Gonzalo gosta de ler, então Laura vai lhe emprestando livros. Ele vai devolvendo uma semana depois; às vezes comentam a respeito, às vezes não. Gostam em geral dos romances de amor. Ele mora com sua mulher e uma filha, longe; faz sempre uma hora e meia de viagem. Às vezes, lê no trajeto.

Um dia de muito calor, Laura o vê do lado de fora do edifício, falando com uma policial. Uma morena de boca grande, olhos delineados, trança preta e brilhante, uniforme justo, coturnos... Um combo magnético completo. Várias outras vezes os vê conversando na calçada.

A policial está encarregada de vigiar essa região de escolas privadas. Sobre o que conversam? Nesses diálogos, que ela testemunha a distância e de passagem, Laura o vê sorrir à policial como nunca tinha visto antes. Algo na gestualidade desse homem se manifesta diante dela, se evidencia. São pessoas reais, pensa Laura. Ela não se sente real. Sente-se transparente, feita de palavras, de ar, de escrita. Eles dois não, eles são de carne e osso. Protegem a classe média trabalhadora que teme por seus filhos, por sua segurança.

Ela os observa com fascinação. Por causa do jeito que se procuram, se oferecem um cigarro, do jeito que ele se põe meio em pose de boxeador contando alguma coisa, do jeito que ela a cada tanto mexe a cabeça fazendo sua trança chicotear, Laura entende que esses dois sentem um desejo louco um pelo outro.

Passa o verão, chega a pandemia. Gonzalo pede permissão e começa a ficar algumas noites para dormir na portaria, onde tem um colchão, porque se torna muito difícil viajar. O outro vigia não consegue chegar, então ele cobre os dois turnos.

Numa manhã, Laura cruza com a policial no térreo do edifício. Desata-se em sua mente uma bomba sexual. Esses dois estão passando uma lua de mel impressionante, pensa. As fantasias esgueiram-se por debaixo da porta. Parece vê-los, sentir o cheiro deles, os imagina, pensa neles, procura policiais mulheres em páginas pornô, cria um fetiche novo, com uniformes e tranças e dominação. Numa noite, desce para ir a um quiosque e escuta uma gargalhada de mulher que vem do fundo do corredor do térreo, perto do aquecedor de água. Uma gargalhada aberta, feliz, descabelada.

No grupo do condomínio circula uma mensagem delatora e paranoica dizendo que há pessoas estranhas passando a noite no edifício. Mas às mensagens param por aí, porque um dia Gonzalo quase não sai da portaria e no noticiário fala-se de uma policial a quem mataram na periferia. E é ela. Laura a reconhece nas fotos; tinha um filho e morava com sua mãe. Mataram-na uns garotos que tentaram assaltá-la e, embora estivesse com roupas civis, eles a reconheceram como policial porque a conheciam do bairro.

Gonzalo não fala. Não pede mais livros. Tem os olhos vermelhos. Laura quer abraçá-lo e levá-lo para o fundo do corredor e deixá-lo chorar em seu peito e sentir suas lágrimas de pessoa real.

Traduzido por Livia Deorsola

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