Nosso estranho amor

Paixões, desencontros, estabilidade e loucuras segundo Anna Virginia Balloussier, Pedro Mairal, Milly Lacombe e Chico Felitti. Uma pausa nas notícias pra gente lembrar tudo aquilo que também interessa demais.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Nosso estranho amor
Descrição de chapéu Relacionamentos LGBTQIA+

Beto e Galvão: amor de seminário

Os dois não precisam mais de códigos para expressar seu desejo

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

São Paulo

A cena era comum em um seminário de Campinas. Um aprendiz de padre virava para o outro e dizia, como quem nada quer: "Vamos ver 'Friends'?" O outro balançava a cabeça que sim, sabendo que eles não iam ver seriado americano, e sim fazer outra coisa dentro do quarto. Isso já faz alguns anos, e os dois não precisam mais de códigos para expressar seu desejo. Até porque estão prestes a se casar.

Mas vale voltar oito anos no tempo para acompanhar a história desses dois ex-seminaristas, que não querem ser nomeados, então serão chamados pelo nome de dois freis, Beto e Galvão.

Em 2014, um Beto que tinha acabado de completar 18 anos começou o que achava ser a trilha profissional da sua vida. Passou a frequentar um encontro vocacional, o primeiro passo para entrar no seminário e depois virar padre. Foi lá que Beto conheceu Galvão. Beto vinha de uma cidade de 60 mil habitantes no interior de São Paulo, que nem cinema tinha. Galvão era oito anos mais velho e já tinha livre tráfego entre padres e bispos.

Duas sombras de homens se abraçam no meio de bolhas de luz
Kalhh por Pixabay

Os dois se viram e sentiram algo. O que no começo foi interpretado como afeto fraternal. Começaram a ter longas conversas, que continuaram quando Beto foi passar um mês fora do Brasil para estudar inglês. Durante toda a viagem, se falavam duas vezes por dia. "De manhã eu falava o que queria fazer, e de noite eu falava o que tinha dado certo e o que não tinha", conta Beto.

No fim de 2014, quando já estavam no mesmo país, foram ver "A Culpa É das Estrelas", mas quando chegaram à bilheteria os ingressos já tinham acabado. Trocaram a sessão por um passeio ao redor de um lago. E foi então que Galvão agiu. "Eu nem lembro direito o que ele fez, se pôs a mão na minha mão ou se tentou me beijar. Só sei que eu pirei. Bloqueei. Fugi", diz Beto.

No ano seguinte, não se viram. Beto fez o primeiro ano do seminário em uma cidade pequena, enquanto Galvão seguiu para Campinas, onde estudaria filosofia em uma universidade, parte do plano para se ordenar. Em 2016, depois de um ano afastados, Beto chegou em Campinas para cursar filosofia na mesma escola. E os dois não só se trombavam na faculdade, como moravam na mesma casa, com outros 40 seminaristas. "A gente estava sempre almoçando, jantando, rezando juntos…"

Até que um dia, que Beto lembra bem ser o 27 de novembro de 2016, ele mandou uma mensagem para o ex-amigo. Algo na linha de "Escuta, você já está em casa?". O outro respondeu com uma música de Sandy que tem na letra a frase: "Seja bem-vindo, entre sem bater." E Beto entrou. "E aí foi tudo de uma vez. Não foi só um beijo, não foi só um filme… Foi tudo de uma vez", ele ri. E completa: "Foram três anos cozinhando o doce de leite".

No começo, Beto achou que ia ser uma experiência única. Mas ela se repetiu. De novo e de novo. "A gente sempre teve muito cuidado sobre como seria nossa vida." Afinal, moravam numa casa com dezenas de outros jovens que estudavam para uma profissão que exige o celibato. "A gente falava em código, para ninguém desconfiar. Ou, se desconfiasse, achar que era coisa da cabeça deles."

O namoro oculto durou anos. Até que, no fim de 2018, um colega de classe de Beto, que era monge, avisou que ia para os Estados Unidos estudar filosofia. E o chamou para ir junto, com tudo pago pelo mosteiro. Ele conseguiu autorização do bispo. E foi contar para o homem que amava. Ouviu de volta: "Vai para os Estados Unidos. Vai, que isso vai me ajudar a me entender também."

Longe de casa, Beto entendeu que seu sonho do passado já não refletia o seu futuro. "As coisas começaram a ficar simples para mim. Eu não me via nesse lugar." No fim de 2020, pediu para sair do seminário, mas continuou estudando filosofia nos EUA. Galvão, enquanto isso, pediu para se retirar do seminário.

Hoje, nenhum dos dois é um futuro padre, mas eles tampouco estão fisicamente juntos. Beto voltou para o Brasil em 2021, por causa da pandemia e da saudade. Em 20 de maio do ano passado, os dois deram um passo importante. Beto chamou Galvão para conversar no quarto, sem precisar de códigos. Disse: "Lembra da nossa conversa de que a vocação vinha primeiro? Isso mudou para mim. Vem comigo? E tirei do bolso uma aliança vagabunda, ruim, ruim, ruim…".

Meses depois, em novembro de 2021, Beto voltaria para os EUA. "Ele me levou no aeroporto. Teve beijo, cena de ‘O Guarda-Costas’ e tudo." Faz meses que Beto está a 7.000 quilômetros de Galvão. Faz um ano que rolou o pedido de casamento, que ainda não tem data marcada. "Ano que vem a gente fala de ir para Portugal, mas está tudo tão nebuloso. Eu não tenho muitas respostas, mas eu quero viver esse amor."

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.