Nosso estranho amor

Paixões, desencontros, estabilidade e loucuras segundo Anna Virginia Balloussier, Pedro Mairal, Milly Lacombe e Chico Felitti. Uma pausa nas notícias pra gente lembrar tudo aquilo que também interessa demais.

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Nosso estranho amor
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A canção conjugal

Que péssima reputação tem o amor conjugal. E, no entanto, no fim, quase todo mundo o procura

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Pedro Mairal

Às vezes tem-se a grande sorte de encontrar uma linda sucessão de acordes. Com nonas e sétimas maiores, e algum acorde que permite modular outra escala e por onde se abre uma passagem, uma fita de Möbius musical na qual você está do outro lado, mas na verdade é tudo o mesmo lado, a mesma canção. Você tem esse loop, que é como uma viagem mental, uma montanha-russa que te afasta e te traz de volta, repetidas vezes. E digo isso porque acredito que, em nosso amor, você e eu, chegamos a esse lugar, onde a repetição é sempre distinta e ao mesmo tempo um grande prazer, porque é o esperado, mas com as variações do puro presente. Vamos ver se consigo explicar direito; isso é apenas uma intuição. Quero dizer que você e eu nos conhecemos há tantos anos e convivemos há tanto tempo, que estamos em um loop, mas esse loop, se alguma vez foi assim, já não é asfixiante. Somos uma sucessão de acordes bem encaixados, que combina harmoniosamente as tensões, as surpresas, a satisfação do já conhecido, as variações. Funcionamos bem. Isso levou tempo, é verdade, mas agora nos estabilizamos. Temos momentos obscuros, acordes menores e tristes, eles existem e os fazemos soar, os manifestamos e os atravessamos, até chegar do outro lado.

'Como é a canção de tudo o que passamos?' - Karime Xavier/Folhapress

Posso passar horas com uma linda sequência de acordes. Tem algo de meditação. Porque desaparece o diálogo mental. É um estado no qual o tempo se dissipa e resta somente o tempo musical, o ritmo. E essa é outra coisa que fazemos bem juntos, o ritmo. O ritmo diário de agendas gerenciáveis, com coisas para fazer, mas não impossíveis nem saturadas, e também o ritmo dos planos a longo prazo. O que podemos fazer, o que teríamos que ir planejando. Antecipação sem ansiedade. Acho que a pandemia nos sincronizou. Eu antes cuidava da casa, mas não tanto como agora. Agora esfrego os banheiros. Eu não fazia isso antes, nunca. Agora às vezes cozinho todas as refeições do dia, cuido do ciclo inteiro da roupa, desde colocá-la para lavar, secá-la, dobrá-la e guardá-la. A pandemia nos deixou independentes e nos igualou. Antes você fazia mais tarefas da casa que eu, e além disso tínhamos ajuda. Agora simplificamos. A casa não está tão limpa como antes, mas nós dois cuidamos de tudo. E essa casa de acordes, onde nos entendemos, é nosso espaço, onde continuamos crescendo.

Que péssima reputação tem o amor conjugal. E, no entanto, no fim, quase todo mundo o procura. Monogamia, exclusividade sexual, segurança afetiva, refúgio, intimidade compartilhada. Quantas coisas nessa lista podem dar errado. Mais ou menos, vamos nos arranjando bem. Pela primeira vez em anos vejo luz no fim do túnel. Esse momento é menos narrativo, isso lá é verdade, há menos coisas para contar nesse romance. Porque é sempre melhor, para a história, ter um conflito. Conflito, confrontação, tensão, explosões, colapsos. A grande destruição dolorosa de um casal sempre dá uma boa história. Por algum motivo as pessoas param para olhar as demolições na rua, mas não as construções. Observar a grande bola de ferro atingir justo a coluna que ainda suportava o peso da estrutura e ver como tudo desmorona num estrondo. É uma maravilha. Em compensação o esforço gradual de ir escorando algo que cresce aos poucos não enche os olhos. Mas é musical.

Qual é a música do amor do tempo que executamos juntos, meu amor? Como é a canção de tudo o que passamos? Como soa essa melodia na saúde e na doença? E os acordes de te sentir dormindo ao meu lado. E o ritmo de nossos corações se abraçando na noite.

Tradução de Livia Deorsola

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