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Leandro Beguoci é diretor editorial de Nova Escola (novaescola.org.br). Ele explica sobre o que funciona (e o que não funciona) na educação brasileira.

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Por que precisamos de educação pública?

Em alguns momentos, precisamos reforçar o óbvio

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Talvez você já tenha lido a tetralogia napolitana. São quatro livros, todos da misteriosa escritora italiana Elena Ferrante. Eles acompanham a vida de duas amigas, da infância à velhice, de Nápoles para o mundo, em todas as suas aventuras, tristezas, descobertas e arrebatamentos. Caso não tenha lido, recomendo. É uma daquelas séries que esbanjam o óbvio de uma forma absolutamente poderosa. E, se tiver TV a cabo, não deixe de ver a série inspirada nas obras e supervisionada por Ferrante. Ela se chama “Amiga Genial” e está na HBO.

Há muitas formas de viver essa história, mas uma me pegou logo nas páginas iniciais da série. As protagonistas, Lila e Lenu, são brilhantes – mas só uma delas conseguiu avançar por todos os anos do que hoje chamaríamos ensino fundamental e médio. A infância das protagonistas acontece na Napoles pós-guerra, numa Europa devastada pelo nazismo, num continente em que a educação não era direito universal. Só ia adiante quem tinha algum dinheiro e pais minimamente comprometidos com a educação dos filhos. O Estado não se importava. Aliás, aqueles anos napolitanos são um bom exemplo do que acontece num país com governo frágil (mais uma dica: leia “A pele”, de Curzio Malaparte, para saber a situação de selvageria que reinava na cidade nos anos 40).

Pode parecer bizarro para um brasileiro de 2019, mas um dos grandes milagres europeus não foi a reconstrução física do continente depois do projeto de morte encabeçado por Hitler. Um dos feitos que construiu a Europa moderna foi a universalização da educação pública, com grande foco em acesso e qualidade. Até a guerra, com exceção da França e de áreas da Alemanha, a educação não era vista como direito inalienável das crianças e adolescentes. E, portanto, não era dever do Estado.

No clássico “Pós-Guerra: uma história da Europa desde 1945”, o professor Tony Judt materializa esse milagre em números. A quantidade de italianos matriculados em instituições básicas explode em poucos aos, o que leva a um subsequente aumento do número de instituições de ensino superior entre os anos 1960 e 1970. A construção foi tão rápida que muitas das gerações educadas logo depois do conflito estudaram em escolas precárias. Lila e Lenu são típicas alunas desse período de transição. São mentalidades em choque com um mundo que, aos poucos, desaparecia. São pessoas como elas que ajudaram a construir essa Europa que, hoje, parece um fato da natureza – mas não é. Essa Europa é fruto do trabalho duro e consciente de muita gente que fez educação com convicção e coragem.

Até a hoje festejada Finlândia passou por processo parecido. Em reportagem recente da Nova Escola, mostramos como o país apostou em educação para superar fome, suicídio e desemprego –e com pouquíssimo dinheiro para fazer isso. O país teve de improvisar com escolas de madeira num clima gelado, mas nunca perdeu de vista dois pontos essenciais. A educação deveria ser um projeto público, de país– e os professores deveriam ser muito valorizados, nunca perseguidos. Os resultados estão aí, quase 70 anos depois.

Esse é um consenso que, no Brasil, foi criado apenas na Constituição de 1988. Nunca me canso de repetir: educação só virou direito de todas as pessoas e foi tratado como tal há 30 anos. Até o fim da década de 80, na prática, tratávamos educação como algo relevante, mas não fundamental. Havia uma carência crônica de escolas. As poucas que existiam eram realmente boas – em grande parte porque tinham professores oriundos da classe média que educavam crianças e adolescentes, em grande parte, criados na mesma classe social (lembre-se que a barra para ser classe média no Brasil é baixa). Era uma escola de poucos para poucos.

Porém, esse consenso está em risco em 2019. Em parte, porque virou moda combater o óbvio – às vezes, o país entra numa espiral adolescente e decide se perder nas loucuradas. Em parte porque algumas das promessas da redemocratização estão em cheque. Muita gente se frustrou, com razão, por conta das crises dos últimos anos. O problema é que, em vez de olhar promessa a promessa, muita gente começou a flertar com a ideia de que o problema seja o sistema como um todo, e não capítulos dele. O risco é jogar a água do banho com a criança dentro.

Por isso, digo sem medo de errar: o Brasil só vai entregar educação para todas as crianças e adolescentes do país se ela for projeto de país. A educação precisa ser, prioritariamente, pública. Esse foi o caminho que outros países trilharam antes de nós. Não há razão para achar que apenas nós, isolados nas nossas loucuras, vamos entregar educação de qualidade seguindo alguma fórmula mágica. Tem muita coisa para mudar? Tem. Para melhorar? Nem me fale, um mundo. Tudo o que foi feito no passado é bom? Não. Mas existe um caminho. É melhor continuar por ele, que já entregou a universalização do acesso, do que abraçar algum exotismo.

O Brasil já fez a experiência de tratar a educação como um bônus para algumas pessoas. Claramente não deu certo. Cabe a nós, neste momento do país, resistir aos encantos dos velhos erros.

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