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Leandro Beguoci é diretor editorial de Nova Escola (novaescola.org.br). Ele explica sobre o que funciona (e o que não funciona) na educação brasileira.

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O Apanhador no Campo de Centeio encontra o Abaporu

As aulas de arte estão matando a sensibilidade das nossas crianças e adolescentes

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Se me permite a viagem no tempo, não fui um grande aluno da aula de artes. Na verdade, eu odiava a disciplina com todas as minhas forças. Aquelas sessões de cópia de desenho, artesanato com argila, tudo aquilo me davam sentimentos ruins —tanto de incapacidade (minha) quanto de desprezo (a todas as outras pessoas, especialmente aos colegas talentosos e à professora).  

Demorei anos para entender essa sensação, mas finalmente a encontrei. Foi há duas semanas, quando li “O Apanhador no Campo de Centeio”,  de J.D. Salinger. A raiva do adolescente que olha ao redor e só vê gente fajuta, fazendo coisas tolas, conformadas com qualquer coisa colocada diante delas, vivendo a vida como se estivessem num piloto automático… Era isso.

Eu achava as aulas de arte fajutas e ficava deprimido com todo o ambiente de afetação que cercava cada um daqueles encontros. A cada aula eu só descobria a parte que faltava em mim, não a que podia ser desenvolvida. E ainda via um monte de gente fingindo grande iluminação diante de desenhos esquisitos…

Quadro  "Abaporu", de Tarsila do Amaral
Quadro "Abaporu", de Tarsila do Amaral - Nelson Antoine - 04.abril.2019/Folhapress

Sei que cheguei ao livro tarde. É uma obra geralmente lida na adolescência. Mas os bons livros, como seres mágicos que são, sabem a hora certa de chegar. Além de aterrissar nas minhas mãos num momento pessoalmente importante, ele ainda abriu as portas da empatia para outra coisa: o tuíte de um adolescente contra o Abaporu, de Tarsila do Amaral.

O menino prefere um dos épicos do século 19, “A batalha do Avaí”, do pintor acadêmico Pedro Américo. Feito sob encomenda do império, ele é o maior quadro de cavalete da história do Brasil, foi pintado na Itália e retrata a visão da monarquia sobre si. Para isso, usa um dos grandes combates da guerra do Paraguai.

Hoje, o quadro está no Museu Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro. Ele mostra bem qual era o papel da pintura na época (criar um imaginário coletivo para o país), além de traduzir um momento bem específico das artes plásticas (os últimos suspiros das imagens descritivas antes do advento da fotografia). Mas eu nunca aprendi isso na escola. Isso tudo eu só soube uns anos atrás, quando fui ao Rio e me deparei com “A batalha do Avaí”.

Já sobre o Abaporu, o adolescente… bem, vou poupá-lo dos adjetivos usados por ele. Entre as pessoas que apoiaram seu ataque de ódio a uma das referências do modernismo brasileiro, a crítica mais comum é que o quadro é fácil de pintar e poderia ser feito por qualquer criança. É uma crítica comum contra a arte moderna e foi bem abordada pelo crítico inglês Will Gompertz num livro fácil e divertido chamado “Isso é arte?” - aliás, fica a dica, ele deveria ser referências nas aulas de arte do ensino médio…

Pois bem. Eu já fui um desses adolescentes que via arte moderna e pensava “meu Deus do céu, que negócio bizarro”. Como nunca ninguém tinha me explicado nada, aqueles rabiscos só me pareciam uma viagem ególatra feita por gente privilegiada para encantar pessoas deslumbradas. Ou seja, coisa fajuta e deprimente.

Foi só na vida adulta, marmanjo barbado, que entendi o impacto do impressionismo, as questões levantadas por Picasso, a briga com a fotografia… Eu precisava dessas chaves - assim como milhares de adolescentes em escolas públicas também precisam. Pronto, mudei de opinião. Cada quadro virou uma aventura.

Eu, assim como a ampla maioria das pessoas no Brasil, não cresceu em casas com quadros pendurados na parede, livros pesados nas mesas de centro, viagens a Florença nas férias e excursões ao MASP.

Qualquer arte é abstrata - e tendemos a ficar encantados com o que parece difícil, como A Batalha do Avaí, com aquilo que mostra justamente que arte é apenas para poucos escolhidos com um talento mágico. Ou seja, arte nunca será para nós. E, se você gosta de uns desenhos e rabiscos a tinta, certamente é só um hipócrita fingidor. Viram o tamanho do desastre? Viram o que estamos tirando de crianças e adolescentes todos os dias? 

Muitas vezes, colocamos na conta da escola uma série de missões que não cabem a ela. A escola pode muita coisa, mas não pode tudo. Porém, abrir as portas das pessoas às artes, à sensibilidade que as obras oferecem, é, sim, trabalho dos professores e das professoras. E isso precisa ser feito com método, com clareza de objetivos. Ensinar artes é tão difícil quanto ensinar matemática. É preciso ensinar história, proporção e, ainda por cima, colocar as pessoas para trabalhar. É ensino ativo na veia, justamente o que a boa pedagogia vem enfatizado nos últimos anos.

Uma vez, li num muro: “a arte existe para que a gente não morra de realidade”. Se continuarmos ensinando arte como sempre fizemos, como se ela fosse privilégio de poucos escolhidos, estaremos matando um monte de pessoas no deserto da realidade. Seremos os fajutos de todas as crianças e adolescentes que passarem por nós. 

Essa é a nossa última coluna. Foi um prazer aprender com os leitores por esse período. Sou grato à Folha e às pessoas que permitiram que essa coluna fosse possível. Às vezes, as coisas precisam acabar para que possam renascer. 

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