Oscar Vilhena Vieira

Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP. Autor de "Constituição e sua Reserva de Justiça" (Martins Fontes, 2023)

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Oscar Vilhena Vieira
Descrição de chapéu Eleições 2018

Ulisses e as sereias

O Supremo deve constituir um obstáculo a iniciativas voltadas a restringir direitos

O medo e o ódio costumam ser maus conselheiros, especialmente na política. Embora as pessoas tenham consciência da necessidade da justiça para conservar a paz, em tempos bicudos, frequentemente abandonam a razão e mesmo seus valores e interesses mais essenciais, deixando-se levar pelas paixões e tentações do momento. "Esta grande fraqueza é incurável na natureza humana", nos dizia David Hume.

As constituições democráticas foram instrumentos concebidos na modernidade, por gente como James Madison, com o objetivo de nos proteger exatamente dessa nossa "incurável" fraqueza. Ao assegurar um conjunto de direitos fundamentais e estabelecer um sistema de freios e contrapesos, que não podem ser abolidos por maiorias circunstanciais, as constituições funcionariam, de acordo com o filósofo Jon Elster, como as cordas que amarraram Ulisses ao mastro de sua embarcação para que, mesmo seduzido pelo canto mortal das sereias, não pudesse levá-la à destruição. 

Um grande número de eleitores brasileiros parece não estar conseguindo resistir ao sinistro canto do populismo autocrático. Inconformados com a corrupção, a violência e a crise econômica, mesmo nossos mais empedernidos liberais rasgaram a fantasia e se lançaram, sem maiores cerimônias, nessa crescente onda antiliberal. O resultado desse processo, logo no primeiro turno, foi uma perigosa desidratação das forças políticas moderadas e uma ampliação do peso de facções hostis ao compromisso constitucional, tanto no Legislativo, como no Executivo. 

Neste momento de profunda divisão da sociedade brasileira, marcado por ações e uma retórica de intransigência e exclusão, caso não haja uma reversão nas urnas neste domingo, é essencial recordar que a Constituição de 1988 estabeleceu um robusto sistema de cláusulas pétreas, voltado a proteger as estruturas básicas do Estado democrático de direito de eventuais ataques perpetrados por maiorias circunstanciais, inebriadas por suas paixões. 

De acordo com o artigo 60, parágrafo 4º, da Constituição, não podem ser objeto de deliberação emendas tendentes a abolir "a forma federativa de Estado; o voto direto, secreto e universal e periódico; a separação de Poderes; e os direitos e garantias individuais". Ao Supremo Tribunal Federal cabe, "precipuamente", a função de guarda da Constituição, inclusive daqueles ataques veiculados por emendas. 

É neste contexto que devemos compreender as toscas intimidações ao Supremo Tribunal Federal e seus ministros. Como instância contramajoritária, o Supremo deverá constituir um dos principais obstáculos a iniciativas voltadas a restringir direitos, fragilizar o sistema de freios e contrapesos ou solapar a democracia. Paradoxalmente, ao invés de intimidar, as estocadas parecem ter despertado o tribunal para sua imensa responsabilidade de assegurar que as amarras constitucionais se mantenham bem apertadas, impedindo que nossa democracia e nossos direitos sejam levados à destruição. 

Evidente que esse trabalho não poderá ficar a cargo apenas do Supremo. Como alerta a insuspeita revista The Economist em seu mais recente editorial sobre as eleições no Brasil, caberá a um amplo leque de atores e instituições proteger a democracia de "ideias repulsivas" e "instintos autoritários". Como disse uma aluna recentemente, "perder uma eleição é normal numa democracia. O problema é perder a democracia numa eleição". 

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