A escalada de discursos hostis contra o parlamento, o Judiciário, a imprensa, as ONGs e os direitos humanos e ambientais, coroada pela ameaça de se “levantar a borduna” e pelo insidioso ataque à democracia veiculado pelo filho do presidente, parece ter acendido a luz vermelha, mesmo entre setores simpáticos ao governo.
As contundentes manifestações do ministro Celso de Mello, decano do Supremo Tribunal Federal, dos presidentes da Câmara e do Senado e do próprio vice-presidente da República em defesa da democracia dão a gravidade dos excessos.
Como interpretar as provocações e estocadas diárias a valores e instituições estabelecidos e protegidos pela Constituição, tratados internacionais e normas jurídicas que deveriam condicionar o exercício do poder numa democracia liberal?
Por que dizer e eventualmente fazer algo que se sabe contrário à lei?
Para aqueles apoiadores que se encontram hoje meio constrangidos, trata-se apenas de “estridência” decorrente do “jeitão autêntico” do presidente.
Não podemos esperar que o presidente se submeta ao decoro exigido ao cargo de chefe de Estado. O importante é aproveitar a cortina de fumaça para avançar as reformas.
Muitos analistas políticos têm, por outro lado, destacado que o objetivo desses discursos tóxicos é apenas reforçar os elos de lealdade com o bolsonarismo mais profundo.
Num momento em que o apoio ao presidente declina e outras figuras do campo conservador ameaçam o projeto de poder do clã, é preciso atacar os inimigos e deixar claro quem verdadeiramente representa aqueles que votaram contra “tudo isso que está aí”.
Creio que o emprego sistemático de discursos que afrontam direitos e hostilizam instituições democráticas tenha, no entanto, uma função mais perversa, que é abrir espaço para a erosão do projeto de construção de uma sociedade mais livre, justa e solidária, como determinado pelo artigo 3º da Constituição.
Para revogar direitos, reduzir a independência de instituições e restringir o espaço de liberdade da sociedade civil é essencial desqualificá-los, estigmatizá-los e, no extremo, demonizá-los, de forma que os movimentos regressivos sejam vistos não apenas como naturais, mas também como legítimos.
Se os direitos indígenas são estigmatizados como um empecilho ao progresso dos agronegócios; se os direitos sociais são apontados como obstáculo à eficiência econômica; se as garantias do devido processo legal são condenadas pelas dificuldades de combater a criminalidade; se os direitos das crianças de ficarem a salvo de toda forma de negligência forem acusados de restringir a liberdade dos pais de transportá-las sem cadeirinha ou de os educarem fora da escola; se os direitos da comunidade LGBT são vilanizados pelo desmantelamento da família; se as ONGs são demonizadas por tocar fogo na floresta e ameaçar a soberania nacional, é preciso “acabar com tudo isso aí”. E se o parlamento e o Judiciário se colocarem no caminho, basta consultar a família presidencial para saber o que fazer.
As palavras do presidente, no entanto, nem sempre são hostis e agressivas. Ama Trump e admira Orbán. Há espaço também para enaltecer figuras como Ustra e Pinochet.
A questão, depois, é o que dizer sobre a tortura praticada por agentes de segurança de supermercados, massacres no sistema prisional, execuções extrajudiciais perpetradas por milicianos e o aumento da letalidade policial.
Comentários
Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.