Oscar Vilhena Vieira

Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP. Autor de "Constituição e sua Reserva de Justiça" (Martins Fontes, 2023)

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Oscar Vilhena Vieira

Para que serve uma Constituição?

Sem ela estaríamos entregues aos nossos principais demônios

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Um dos mais bem guardados segredos dos ingleses é a sua Constituição. Alguns estrangeiros desavisados chegam inclusive a acreditar que os ingleses não têm Constituição. A maneira pacífica e quase ritualística com que os processos de sucessão da rainha Elizabeth 2ª e da chefia de governo estão ocorrendo não deixa qualquer dúvida, no entanto, que o exercício e a alternância no poder estão subordinados a um conjunto bastante rígido de preceitos constitucionais no Reino Unido.

De outro lado, não há qualquer segredo que regimes autocráticos, do passado, como a União Soviética de Stalin e o Chile de Pinochet, ou do presente, como a Hungria de Orbán e a Rússia de Putin, empunhem suas Constituições, ainda que essas folhas de papel não tenham nenhuma capacidade de condicionar a forma como o poder foi ou é exercido nesses regimes.

Mão segura o livro da Constituição Federal
Gabriela Biló - 11.ago.22/Folhapress

Esse aparente paradoxo se explica pelo fato de o termo constituição ter adquirido uma excelente reputação nos últimos séculos, sendo associado a ideias como liberdade, moderação ou mesmo democracia e justiça. Dada a natureza cínica da vida política, não surpreende que governantes autocráticos busquem legitimar o seu poder com base em um documento que chamam de Constituição. Essa, porém, é apenas uma forma farsesca de empregar o termo.

A Constituição, em sua essência, é uma norma superior que aspira habilitar a competição política, regular a alternância no poder, bem como condicionar o seu exercício em função dos direitos dos cidadãos e das leis. Nesse sentido, a Constituição favorece a colaboração entre concorrentes na condução da vida coletiva, ao contarem com uma garantia de que não serão eliminados caso seus adversários cheguem ao poder.

A função fundamental das Constituições, portanto, é contribuir para que a sociedade seja capaz de coordenar de maneira pacífica e ordenada os seus conflitos. Numa democracia, em que a vontade da maioria deve prevalecer, as Constituições também podem ser instrumentos eficientes para mitigar danos decorrentes de ciclos populistas.

Ao assegurar direitos, que não podem ser suprimidos pela vontade da maioria, e organizar um sistema de freio e contrapesos, que distribui o poder entre diversas instituições e setores da sociedade, as Constituições democráticas contribuem para impedir que maiorias eventuais possam subtrair das próximas gerações as mesmas franquias e liberdades que dispuseram para chegar ao poder.

Como sabemos, a sobrevivência e a vitalidade das Constituições dependem, em última instância, do comprometimento dos principais atores políticos e institucionais, além da adesão dos mais diversos setores da sociedade ao pacto constitucional. Quando isso não acontece, elas entram em crise e eventualmente fenecem.

Evidente que as Constituições não são um obstáculo intransponível a líderes populistas autoritários. Elas podem desempenhar um papel fundamental, no entanto, ao arrefecer ciclos de embriaguez política promovidos por populistas, mitigando a erosão do processo democrático, até que o eleitor recobre a sobriedade, e a vida constitucional volte à normalidade.

Em outras palavras, o tempo constitucional é mais lento que o tempo dos ciclos eleitorais, o que possibilita que a sociedade seja obrigada —em face dos procedimentos constitucionais— a esfriar a cabeça. Nesse sentido, as Constituições podem servir como uma espécie de superego da sociedade, sem o qual estaríamos entregues aos nossos principais demônios.

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