Otavio Frias Filho

Diretor de Redação da Folha de 1984 a 2018, autor de “Queda Livre” e “Cinco Peças e Uma Farsa”.

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Otavio Frias Filho

Fantasmas do passado

É sugestivo que Getúlio jamais tenha sido acusado de corrupção, nem pelos adversários mais implacáveis

O Brasil é considerado um país sem memória. Na frase de Ivan Lessa, a cada 15 anos o Brasil esquece o que aconteceu nos últimos 15 anos. Por isso, quando nos deparamos com um manancial como o reunido pelo documentário "Imagens do Estado Novo - 1937 a 1945", atualmente em exibição, vamos de uma surpresa a outra em face do muito que foi preservado.

O autor, Eduardo Escorel, é um cineasta comprovado, montador de filmes lendários como "Terra em Transe" (1967) e "Macunaíma" (1969). Com quase quatro horas de duração, este documentário sobre a ditadura do Estado Novo completa três anteriores —"1930 - Tempo da Revolução" (1990), "32 - A Guerra Civil" (1993) e, talvez o melhor deles, "35 - O Assalto ao Poder" (2002)—, todos com produção de Claudio Kahns a partir de projeto de André Singer, totalizando outros 196 minutos.

getúlio discursa
Getúlio Vargas em cena do documentário "Imagens do Estado Novo", de Eduardo Escorel - Divulgação

Em seu novo trabalho, Escorel dispensou os depoimentos de historiadores para se ater às imagens tremeluzentes. Parte delas são trechos de cinejornais e das filmagens de propaganda. Era um tempo de banquetes oferecidos às "classes armadas" (generais) e aos "príncipes da igreja" (prelados católicos), de comícios onde se veem multidões uniformizadas num mar de paletós e chapéus.

José Américo de Almeida, Osvaldo Aranha, Gustavo Capanema aparecem como ectoplasmas. Armando de Salles Oliveira, governador de São Paulo que criou a USP (1934) sob os auspícios do jornal O Estado de S. Paulo, faz perorações à moda antiga, a voz empostada e cantante, em sua bem-documentada campanha à Presidência, que o golpe de 1937 liquidou. Filinto Müller, o sinistro chefe da polícia política, surge em cenas de intimidade familiar com o ditador sorridente.

Tais imagens políticas são alternadas com outras sequências, extraídas de filmes domésticos. Aqui as pessoas ostentam aquele acanhamento, entre a timidez e o amor-próprio, de uma época em que ainda não era costume sorrir tolamente para as câmeras, suas roupas parecendo amarfanhadas ou de tamanho diferente do requerido. Há muitas cenas de Carnaval de rua, e nos perguntamos se o tema foi muito documentado ou o diretor preferiu aquelas imagens, como se assim ressaltasse a alienação popular em face dos movimentos que agitavam, nas altas instâncias, a política.

O que distingue a ditadura do Estado Novo é configurar uma expressão quase pura de cesarismo, ou bonapartismo. São aquelas situações em que, após seguidas lutas entre forças que não conseguem se impor umas às outras, o poder é capturado ou antes delegado por exaustão a um líder autoritário, que se propõe a governar acima das partes e às vezes parece de fato pairar sobre elas.

Dada a fraqueza da sociedade civil, ainda mais débil naquela época do que hoje, não foi difícil para um governante astuto usar o poder em que já estava bem instalado desde 30 para manobrar seus adversários em meio ao pretexto de três levantes armados —liberal-oligárquico (32), comunista (35) e integralista (38)— até empalmar a ditadura plena em 37.

Era uma época em que a política estava militarizada em grande parte do mundo, em particular no Brasil, onde os militares exerceram poder de veto e tutela de 1930 a 1964 e se arvoraram a governar diretamente dessa data a 1985.

A própria intromissão prolongada dos militares pode ser vista como invasão do vazio deixado pela debilidade da sociedade civil, submetida às tremendas trações ideológicas do fascismo e do comunismo. Getúlio foi sustentado e depois deposto pelos militares.

Como o julgamento de Lula está na ordem do dia, o espectador do filme de Eduardo Escorel pode ser tentado a cogitar paralelos.

Dois políticos pragmáticos, inclinados mais à negociação do que ao confronto, sustentados por uma popularidade atribuída às medidas sociais adotadas quando no poder (no caso de Getúlio, direitos; no de Lula, bônus e créditos), combatidos por forças reacionárias que conseguem romper as regras ou forçá-las de modo a inviabilizar o governo de um (Getúlio) e bloquear a presumível volta do outro (Lula).

Mas as diferenças são maiores que as recorrências, a começar que Getúlio exerceu impacto muito maior sobre um Estado ainda em formação, tendo governado, aliás, durante mais que o dobro do tempo de Lula.

É sugestivo que Getúlio jamais tenha sido acusado de corrupção, nem mesmo pelos adversários mais implacáveis, embora ela grassasse a seu redor. E que Lula tenha se mantido nos limites de um histórico impecável como líder democrático. Ambos sinais de uma sociedade hoje, apesar de tudo, mais atuante, e de um Estado menos autossuficiente.

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